Observância
das normas litúrgicas e “ars celebrandi”
“Caríssimos
irmãos e irmãs, hoje trazemos este texto da própria Santa Sé sobre a observância
das normas litúrgicas (ML)”
1. A
situação no pós-Concílio
O
Concílio Vaticano II ordenou uma reforma geral na sagrada liturgia [1]. Esta foi
efetuada, após o encerramento do Concílio, por uma comissão chamada
abreviadamente de Consilium [2]. É sabido que a reforma litúrgica foi desde o
início objeto de críticas, às vezes radicais, como de exaltações, em certos
casos excessivas. Não é nossa intenção nos deter neste problema. Podemos dizer
em contrapartida que se está geralmente de acordo em observar um forte aumento
dos abusos no campo celebrativo depois do Concílio. Também o Magistério recente
tomou nota da situação e em muitos casos chamou à estrita observância das normas
e das indicações litúrgicas. Por outro lado, as leis litúrgicas estabelecidas
para a forma ordinária (ou de Paulo VI) — que, exceções à parte, celebra-se
sempre e em todas partes na Igreja de hoje — são muito mais "abertas" em relação
ao passado. Estas permitem muitas exceções e diversas aplicações, e preveem
também múltiplos formulários para os diversos ritos (a pluriformidade inclusive
aumenta na passagem da editio typica latina às versões nacionais). Apesar disso,
um grande número de sacerdotes considera que tem de ampliar ulteriormente o
espaço deixado à "criatividade", que se expressa sobretudo com a frequente
mudança de palavras ou de frases inteiras em relação às fixadas nos livros
litúrgicos, com a inserção de "ritos" novos e frequentemente estranhos
completamente à tradição litúrgica e teológica da Igreja e inclusive com o uso
de vestimentas, utensílios sagrados e adornos nem sempre adequados e, em alguns
casos, caindo inclusive no ridículo. O liturgista Cesare Giraudo resumiu a
situação com estas palavras:
"Se
antes [da reforma litúrgica] havia fixação, esclerose de formas, inaturalidade,
que faziam a liturgia de então um ‘liturgia de ferro', hoje, há naturalidade e
espontaneidade, sem dúvida sinceras, mas frequentemente confusas, mal
entendidas, que fazem — ou ao menos correm o risco de fazer — da liturgia uma
"liturgia de borracha", incerta, escorregadiça, que às vezes se expressa em uma
ostentosa liberação de toda normativa escrita. [...] Esta espontaneidade mal
entendida, que se identifica de fato com a improvisação, a falta de seriedade, a
superficialidade, o permissivismo, é o novo ‘critério' que fascina inumeráveis
agentes pastorais, sacerdotes e leigos.
[...]
Por não falar também daqueles sacerdotes que, às vezes e em alguns lugares,
arrogam-se o direito de utilizar pregações eucarísticas selvagens, ou de compor
aqui ou ali seu texto ou partes dele" [3].
O
Papa João Paulo II, na encíclica Ecclesia de Eucharistia, manifestou seu
desgosto pelos abusos litúrgicos que acontecem frequentemente, particularmente
na celebração da Santa Missa, já que a "Eucaristia é um dom demasiado grande
para suportar ambiguidades e diminuições" [4]. Ele acrescentou:
"Temos
a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica
pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram
abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reacção contra o
«formalismo» levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem
não obrigatórias as «formas» escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja
e do seu magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes
completamente impróprias. Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo
para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na
celebração eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica
eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A liturgia nunca
é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são
celebrados os santos mistérios." [5].
2.
Causas e efeitos do fenômeno
O
fenômeno da "desobediência litúrgica" estendeu-se de tal forma, por número e em
certos casos também por gravidade, que se formou em muitos uma mentalidade pela
qual na liturgia, salvando as palavras da consagração eucarística, se poderiam
dar todas as modificações consideradas "pastoralmente" oportunas pelo sacerdote
ou pela comunidade. Esta situação induziu o próprio João Paulo II a pedir à
Congregação para o Culto Divino que preparasse uma Instrução disciplinar sobre a
Celebração da Eucaristia, publicada com o título de Redemptionis Sacramentum, a
25 de março de 2004. Na citação antes reproduzida da Ecclesia de Eucharistia,
indicava-se na reação ao formalismo uma das causas da "desobediência litúrgica"
de nosso tempo. A Redemptionis Sacramentum assinala outras causas, entre elas um
falso conceito de liberdade [6] e a ignorância. Esta última em particular se
refere não só ao conhecimento das normas, mas também a uma compreensão
deficiente do valor histórico e teológico de muitos textos eucológicos e ritos:
"Finalmente, os abusos se fundamentam com frequência na ignorância, já que quase
sempre se rejeita aquilo que não se compreende seu sentido mais profundo e sua
Antiguidade" [7].
Introduzindo
o tema da fidelidade às normas em uma compreensão teológica e histórica, ademais
de no contexto da eclesiologia de comunhão, a Instrução afirma: "O Mistério da
Eucaristia é demasiado grande «para que alguém possa permitir tratá-lo ao seu
arbítrio pessoal, pois não respeitaria nem seu caráter sagrado, nem sua dimensão
universal» [...] Os atos arbitrários não beneficiam a verdadeira renovação e sim
lesionam o verdadeiro direito dos fiéis à ação litúrgica, à expressão da vida da
Igreja, de acordo com sua tradição e disciplina. Além disso, introduzem na mesma
celebração da Eucaristia elementos de discórdia e de deformação, quando ela tem,
por sua própria natureza e de forma eminente, de significar e de realizar
admiravelmente a Comunhão com a vida divina e a unidade do povo de Deus. Estes
atos arbitrários causam incerteza na doutrina, dúvida e escândalo para o povo de
Deus e, quase inevitavelmente, uma violenta repugnância que confunde e aflige
com força a muitos fiéis em nossos tempos, em que frequentemente a vida cristã
sofre o ambiente, muito difícil, da «secularização».
Por
outra parte, todos os fiéis cristãos gozam do direito de celebrar uma liturgia
verdadeira, especialmente a celebração da santa Missa, que seja tal como a
Igreja tem querido e estabelecido, como está prescrito nos livros litúrgicos e
nas outras leis e normas. Além disso, o povo católico tem direito a que se
celebre por ele, de forma íntegra, o santo Sacrifício da Missa, conforme toda a
essência do Magistério da Igreja. Finalmente, a comunidade católica tem direito
a que de tal modo se realize para ela a celebração da Santíssima Eucaristia, que
apareça verdadeiramente como sacramento de unidade, excluindo absolutamente
todos os defeitos e gestos que possam manifestar divisões e facções na Igreja."
[8]
Particularmente
significativo neste texto é o chamado ao direito dos fiéis de terem a liturgia
celebrada segundo as normas universais da Igreja, além de sublinhar o fato de
que as transformações e modificações da liturgia — ainda que se façam por
motivos "pastorais" — não têm na realidade um efeito positivo neste campo; ao
contrário, confundem, turbam, cansam e podem inclusive fazer os fiéis se
afastarem da prática religiosa.
3. O
ars celebrandi
Eis
aqui os motivos pelos quais o Magistério nas últimas quatro décadas recordou
várias vezes aos sacerdotes a importância do ars celebrandi, o qual — se bem não
consiste apenas na perfeita execução dos ritos de acordo com os livros, mas
também e sobretudo no espírito de fé e adoração com os que estes se celebram —
não se pode no entanto realizar se se afasta das normas fixadas para a
celebração [9]. Assim o expressa por exemplo o Santo Padre Bento XVI: "O
primeiro modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a
condigna celebração do mesmo; a arte da celebração é a melhor condição para a
participação ativa (actuosa participatio). Aquela resulta da fiel obediência às
normas litúrgicas na sua integridade, pois é precisamente este modo de celebrar
que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os crentes, chamados a
viver a celebração enquanto povo de Deus, sacerdócio real, nação santa"(cf. 1 Pd
2,4-5.9)" [10].
Recordando
estes aspectos, não se deve cair no erro de esquecer os frutos positivos
produzidos pelo movimento de renovação litúrgica. O problema assinalado,
contudo, subsiste e é importante que a solução ao mesmo parta dos sacerdotes, os
quais devem se empenhar antes de tudo em conhecer de maneira aprofundada os
livros litúrgicos, e também a pôr fielmente em prática suas prescrições. Só o
conhecimento das leis litúrgicas e o desejo de se ater estritamente a elas
impedirá ulteriores abusos e "inovações" arbitrárias que, se no momento podem
talvez emocionar os presentes, na realidade acabam logo por cansar e defraudar.
Salvas as melhores intenções de quem as comete, depois de quarenta anos de
experiência na questão, a "desobediência litúrgica" não constrói de fato
comunidades cristãs melhores, mas, ao contrário, põe em risco a solidez de sua
fé e de sua pertença à unidade da Igreja Católica. Não se pode utilizar o
caráter mais "aberto" das novas normas litúrgicas como pretexto para
desnaturalizar o culto público da Igreja:
"As
novas normas simplificaram muito as fórmulas, os gestos, os atos litúrgicos
[...] Mas neste campo não se deve ir além do estabelecido: de fato, procedendo
assim, se despojaria a liturgia dos sinais sagrados e de sua beleza, que são
necessários, para que se realize verdadeiramente na comunidade cristã o mistério
da salvação e seja compreendido também, sob o véu das realidades visíveis,
através de uma catequese apropriada. A reforma litúrgica de fato não é sinônimo
de dessacralização, nem quer ser motivo para esse fenômeno que chamam de a
secularização do mundo. É necessário por isso conservar nos ritos dignidade,
seriedade, sacralidade" [11].
Entre
as graças que esperamos poder obter da celebração do Ano Sacerdotal está
portanto também a de uma verdadeira renovação litúrgica no seio da Igreja, para
que a sagrada liturgia seja compreendida e vivida pelo que esta é na realidade:
o culto público e integral do Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros, culto
de adoração que glorifica a Deus e santifica os homens [12].
__________________________________
Notas
[1]
Cf. Concílio Vaticano II , Sacrosanctum Concilium, n. 21.
[2]
Abreviação de Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra
Liturgia.
[3]
C. Giraudo, "La costituzione 'Sacrosanctum Concilium': il primo grande dono del
Vaticano II", en La Civiltà Cattolica (2003/IV), pp. 532; 531.
[4]
João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, n. 10.
[5]
Ibid., n. 52. Cf. também Concílio Vaticano II , Sacrosanctum Concilium, n.
28.
[6]
"Não é estranho que os abusos tenham sua origem em um falso conceito de
liberdade. Posto que Deus nos tem concedido, em Cristo, não uma falsa liberdade
para fazer o que queremos, mas sim a liberdade para que possamos realizar o que
é digno e justo": Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos, Redemptionis Sacramentum, n. 7.
[7]
Ibid., n. 9.
[8]
Ibid., nn. 11-12.
[9]
Sagrada Congregação dos Ritos, Eucharisticum Mysterium, n. 20: "Para favorecer o
correto desenvolvimento da celebração sagrada e a participação ativa dos fiéis,
os ministros não devem apenas limitar-se a realizar seu serviço com exatidão,
segundo as leis litúrgicas, mas devem comportar-se de forma que inculquem, por
meio deste, o sentido das coisas sagradas"
[10]
Bento XVI, Sacramentum Caritatis, n. 38. Veja-se o n. 40, que desenvolve
adequadamente o conceito.
[11]
Sagrada Congregação para o Culto Divino, Liturgicae instaurationes, n. 1. O
texto continua: "A eficácia das ações litúrgicas não está na busca contínua de
novidades rituais, ou de simplicações ulteriores, mas no aprofundamento da
palavra de Deus e do mistério celebrado, cuja presença está assegurada pela
observância dos ritos da Igreja e não dos impostos pelo gosto pessoal de cada
sacerdote. Tenha-se presente, ademais, que a imposição de reconstruções pessoais
dos ritos sagrados por parte do sacerdote ofende a dignidade dos fiéis e abre
caminho para o individualismo e o personalismo na celebração de ações que
diretamente pertencem a toda Igreja".
[12]
Cf. Pio XII, Mediator Dei, I, 1; Concílio Vaticano II , Sacrosanctum Concilium,
n. 7.
Fonte:
Vaticano
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