quinta-feira, 21 de outubro de 2004
Igreja de Comandaroba, em Laranjeiras – SE
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Por
que o interesse no século XIX? Não há mistério. O novecentos é o século
da invenção de Sergipe. É o tempo da autonomia política, que faz par
com independência, separação, identidade, concentração e controle local.
Para fabricar essa formação social, a memorialística e as produções
literária ficcional e historiográfica tiveram lá o seu papel. Mas, o
monopólio da violência foi fundamental. Falar em controle no século XIX,
é examinar o desenvolvimento de políticas públicas que envolveram a
ação de, pelo menos, três “pês” profissionais: policiais, professores e
padres. Tratar de padres, por conseguinte, é tratar da Igreja Católica,
que detinha o controle oficial sobre a crença.
A
pesquisa histórica profissional ainda não deu respostas significativas
sobre os dois primeiros “pês.” Mas, em relação ao “p”, dos padres,
párocos ou pastores, as informações começaram a ganhar domínio público
ampliado com a defesa da dissertação de mestrado de Péricles Morais de
Andrade Júnior, há quatro anos – Sob o olhar diligente do pastor:
a Igreja Católica em Sergipe (1831/1926). Em 2002, o terceiro capítulo,
que tematiza a criação da “Diocese de Aracaju e a reforma do clero
sergipano (1910/1931)”, foi publicado na Revista de Aracaju (n. 9), e agora, em escala nacional – História das religiões no Brasil (Recife: CEHILA/Editora da UFPE, 2004) –, divulga-se o principal texto: “A Igreja Católica em Sergipe no século XIX”.
Nesse
escrito, Péricles Júnior descreve, sumariamente, a organização
administrativa da Igreja – de uma vigararia e nove freguesias no início
do século XIX para trinta e quatro freguesias cem anos depois. Trata
também da função dos templos e irmandades e da formação do clero –
moldado na Bahia sob a orientação romanizadora (tridentina) do
reformista Dom Romualdo Seixas (1787/1860). Desse ponto em diante, o que
se vê no texto são as diversas iniciativas do novo clero – “de ‘vida
santa’ e ‘ilibada’” – no sentido de disciplinar e purificar as práticas
religiosas. Afirma-se que as irmandades e confrarias foram monitoradas;
comunitários perderam a autonomia sobre suas capelas; os templos
deixaram de funcionar como cemitérios; os cultos aos santos – práticas
domésticas (familiares) e públicas (em praça e na rua) – foram
restringidos aos párocos e “honrados pais de família” e envoltos em
clima de sobriedade. Em síntese, sob o olhar atento ao discurso dos
pastores, o que Péricles anuncia acerca do século XIX é a ocorrência de
uma mudança de orientação da Igreja e o emprego de um (novo?) padrão
civilizador para a educação dos sergipenses.
Não
farei considerações sociológicas, se a idéias de “campo” e de “capital
simbólico” foram fundamentais para a interpretação do discurso dos
clérigos, recolhido nas dezenas de missivas consultadas no APES etc.
Apenas, saúdo a iniciativa e sugiro a continuação do trabalho, pondo os
olhos, agora (sem a vulgata foucaultiana do “efeito disciplinador”),
sobre um outro tipo de discurso: o dos presidentes da Província. Lá, nos
relatórios e mensagens, repousam preciosos indícios da importância da
missão e também do fardo administrativo que parte desse clero
representava para o Estado. Um peso absorvido nos anos 1830, quem têm
seu ponto culminante nos anos 1840, com queda abrupta na década
seguinte, regredindo progressivamente até a instauração do regime
republicano.
A
mim, do texto, bastam as imagens fornecidas sobre as práticas
religiosas e a resultante da manipulação de uma seqüência de nomes de
autoridades eclesiásticas, de datas de criação de freguesias e de
costumeiras “reclamações ao bispo”: a sugestão de que a história da
devoção católica em Sergipe é também (e, sobretudo) a história de um
conflito entre um catolicismo popular e um catolicismo reformado; entre
religiosos de formação vária; entre leigos de traços étnicos e de
capital econômico diferenciados – conflito esse para o qual foram
chamados a intervir o “aparato policial e as posturas municipais” com o
fito de fazer valer os novos “padrões de decoro e de moralidade” do novo
clero. (p. 397).
Durante
a feitura da dissertação, Péricles Júnior deve ter sofrido os
condicionamentos da mudança de área. Ele graduou-se em História, fez
mestrado em Ciências Sociais. Não é improvável que tenha ouvido coisas
do tipo “a diacronia não nos interessa”, “a pesquisa arquivística não é
indispensável” etc. Mas, bem o sabemos: um pé na crítica histórica, na
dúvida metódica e no trabalho com fontes coevas, mais que desvirtuar,
enriquece a formação desse futuro sociólogo quase doutor pela UFPE, que
põe ênfase na atribuição de sentidos sob fórmulas de Pierre Bourdieu.
Não
obstante as velhas e compreensíveis lutas identitárias entre sociologia
e história, o capítulo sobre a Igreja Católica acrescenta uma boa pá de
terra nas crateras dessa desconhecida estrada que é o nosso século XIX.
Além disso, credencia o autor para a construção de uma síntese sobre o
tema. Atualmente, pela orientação e pela experiência, é o profissional
em Sergipe que melhor domina os instrumentos requeridos para essa
tarefa.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A Igreja Católica em Sergipe no século XIX. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 21 out. 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Fonte da imagem:
Foto: Igreja de Comandaroba, em Laranjeiras – SE
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