sábado, 3 de março de 2012

Da Constituição pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje, do Concílio Vaticano II:



O mundo moderno apresenta-se simultaneamente poderoso e fraco, capaz do melhor e do pior; abre-se diante dele o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade e do ódio. Por outro lado, o homem toma consciência de que depende dele a boa orientação das forças por ele despertadas e que podem oprimi-lo ou servi-lo. Eis por que se interroga a si mesmo.
Na verdade, os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno estão ligados a um desequilíbrio mais profundo, que se enraíza no coração do homem. No íntimo do próprio homem, muitos elementos lutam entre si. De um lado, ele experimenta, como criatura, suas múltiplas limitações; por outro, sente-se ilimitado em seus desejos e chamado a uma vida superior.
Atraído por muitas solicitações, é continuamente obrigado a escolher e a renunciar. Mais ainda: fraco e pecador, faz muitas vezes o que não quer e não faz o que desejaria. Em suma, é em si mesmo que o homem sofre a divisão que dá origem a tantas e tão grandes discórdias na sociedade.
Muitos, sem dúvida, que levam uma vida impregnada de materialismo prático, não podem ter uma clara percepção desta situação dramática; ou, oprimidos pela miséria, sentem-se incapazes de prestar-lhe atenção.
Outros, em grande número, julgam encontrar satisfação nas diversas interpretações da realidade que lhes são propostas.
Alguns esperam unicamente do esforço humano a verdadeira e plena libertação da humanidade, e estão persuadidos de que o futuro domínio do homem sobre a terra dará satisfação a todos os desejos de seu coração.
Não faltam também os que, desesperando de encontrar o sentido da vida, louvam a audácia daqueles que, julgando a existência humana vazia de qualquer significado próprio, se esforçam por encontrar todo o seu valor apoiando-se apenas no próprio esforço.
Contudo, diante da atual evolução do mundo, cresce o número daqueles que formulam as questões mais fundamentais ou as percebem com nova acuidade. Que é o homem? Qual é o sentido do sofrimento, do mal e da morte que, apesar de tão grandes progressos, continuam a existir? Para que servem semelhantes vitórias, conseguidas a tanto custo? Que pode o homem dar à sociedade e dela esperar? Que haverá depois desta vida terrestre?
A Igreja, porém, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todo o gênero humano, oferece ao homem, pelo Espírito Santo, luz e forças que lhe permitirão corresponder à sua vocação suprema; ela crê que não há debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possam ser salvos.
Crê igualmente que a chave, o centro e o fim de toda a história humana encontra-se em seu Senhor e Mestre.
A Igreja afirma, além disso, que, subjacente a todas as transformações, permanecem imutáveis muitas coisas que têm seu fundamento último em Cristo, o mesmo ontem, hoje e sempre.

 




X. Ouvir – a primeira e fundamental atitude!


Três meses após a saída do Egito, o povo chegou ao deserto do Sinai, no sul da península. Aí, o Senhor e Israel iriam fazer uma Aliança para sempre! O Senhor recorda o que Ele fez pelo povo e pede-lhe amor e obediência: “Vistes o que fiz aos egípcios, e como vos levei sobre asas de águia e vos trouxe a Mim. Agora, se realmente ouvirdes Minha voz e guardardes a Minha aliança, sereis Minha propriedade exclusiva dentre todos os povos. De fato é Minha toda a terra, mas vós sereis para Mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,4-6).
O povo responde, generoso: “Tudo que o Senhor disse nós faremos!” (Ex 19,8). Toda esta aliança de amor, Israel a resume nas palavras do Shemá: “Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e trarás bem dentro do coração todas estas palavras que hoje te digo. Tu as inculcarás a teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em casa e quando estiveres andando pelos caminhos; quando te deitares e quando te levantares. Hás de atá-las à mão para te servirem de sinal; e as colocarás como faixa entre os olhos, e as escreverás nos umbrais da casa e nas portas” (Dt 6,4s).
Atenção para o sentido destas palavras! Afirmar que o Senhor é um só e somente Ele, o Senhor, é Deus, não é uma questão numérica. Trata-se de ter firme na mente, no coração e na vida que somente o Senhor é tudo: é a origem, o fundamento, o sentido, o sustento e a finalidade de tudo quanto existe e da minha própria existência pessoal. Afirmar que somente o Senhor é Deus significa renunciar a viver para mim, centrado em mim, do meu modo e na minha medida, para viver para Ele, centrado Nele, do Seu modo e na Sua medida: eu não sou Deus, as pessoas às quais amo não são Deus, meus bens e meus projetos não são Deus: só o Senhor é Deus! Assim, Nele eu vivo e Nele aposto toda a minha existência em total obediência à Sua santa vontade! Eis o sentido profundo e radical do Shemá Israel! Mas, como o amor não pode ser imposto, ordenado, mas somente conquistado, as palavras santas da Escritura começam precisamente com um “Ouve, Israel!”... Que significa isto? Israel, abre teu ouvido e teu coração, recorda tudo quanto o Senhor fez por ti: como te socorreu, como te arrancou do Egito, como te conduziu, como é um Deus grande, forte e misericordioso! Ouve, recorda, medita, aprende... E, por tudo isto e em tudo isto, aprende a amar o teu Deus, porque Ele é amável, Ele o merece!
A aliança do Sinai é um ponto alto da comunhão entre Israel e o seu Deus e envolve um amor exclusivo: O Senhor será o Deus de Israel e Israel somente terá o Senhor como o seu Deus. Esta aliança entre o Deus-Esposo e Israel-Esposa será expressa de modo apaixonado pelo Cântico dos Cânticos: “Meu Amado é para mim e eu sou para o meu amado!” (Ct 2,16). Infelizmente, já aí mesmo, Israel cometeu o maior de todos os seus pecados no deserto: a idolatria, que equivale a um adultério! Tal pecado é causado pelo desejo de domesticar o Senhor e Dele dispor como uma coisa a seu serviço: “Vendo que Moisés demorava a descer do monte, o povo reuniu-se em torno de Aarão e lhe disse: ‘Vamos! Faze-nos um deus que caminhe à nossa frente. Pois quanto a um tal de Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos o que aconteceu’. Aarão lhes disse: ‘Tirai os brincos de vossas mulheres, vossos filhos e vossas filhas, e trazei-os a mim’. Todo o povo arrancou os brincos de ouro que usava, e os trouxe para Aarão. Recebendo o ouro, ele o moldou com o cinzel e fez um bezerro fundido. Então eles disseram: ‘Aí tens, Israel, o deus que te fez sair do Egito!’ Ao ver isto, Aarão construiu um altar diante da imagem e proclamou: ‘Amanhã haverá festa em honra do Senhor’. Levantando-se na manhã seguinte, ofereceram holocaustos e apresentaram sacrifícios pacíficos. O povo sentou-se para comer e beber, e depois levantou-se para se divertir. O Senhor falou a Moisés: ‘Vamos! desce, pois perverteu-se o teu povo que tiraste do Egito. Bem depressa desviaram-se do caminho que lhes prescrevi. Fizeram um bezerro fundido, adoraram-no e ofereceram sacrifícios diante dele, dizendo: ‘Israel, aí tens o teu deus, que te fez sair do Egito’. O Senhor disse a Moisés: ‘Já vi que este povo é um povo de cabeça dura’” (Ex 32,1-9).
Note bem: Israel não renega o Senhor, tanto que, festejando os bezerros pensava estar fazendo uma festa para o Senhor (cf. Ex 32,5)... Então, qual é o seu pecado? É querer controlar o Senhor, nem que para isto tenha-se que reduzi-lo a um bezerro: querem um deus que caminhe à frente dele do modo deles, no ritmo deles, controlado por eles, um deus que diga ‘amém’ aos projetos deles! (cf. Ex 32,1) Ter o Senhor na mão, reduzir Deus à nossa medida, à nossa lógica, ao nosso gosto, controlá-Lo de modo que possamos utilizá-Lo em proveito nosso – eis a tentação de Israel e nossa! Mas o Senhor não se deixa controlar: nem pela arca (cf. 1Sm 4,4-12), nem pelo Templo, nem por Jerusalém, (cf. Jr 7,1-15) nem por nada! Se Israel e nós quisermos caminhar com o Senhor, temos de nos amoldar a Ele, um Deus grande, livre, incontrolável, misterioso! Nós é que temos de nos converter a Ele; não Ele a nós!
Observe como o Senhor mostra-Se indignado com a atitude do Seu povo! Chega mesmo a dizer a Moisés: é o teu povo, que tu tiraste do Egito... A linguagem é forte e áspera, quase como se Deus dissesse: este não é mais o Meu povo! O Senhor terá que educar Israel; o povo terá que destruir seus ídolos, suas falsas seguranças! Moisés fará o povo destruir os bezerros de ouro, reduzi-los a pó e beber (cf. Ex 32,19-20).
Quantas vezes isto se repetirá na história de Deus com o Seu povo! O coração de Israel, como o nosso, é inconstante! Mais tarde, o Senhor exclamará: “Que te farei, Efraim? Que te farei, Judá? Vosso amor é como a nuvem da manhã, como o orvalho que cedo desaparece” (Os 6,4).
Mas, o caminho continua: Israel dirigiu-se, então, para o deserto de Farã. O Senhor guiava-o como uma coluna de nuvem (cf. Nm 10,11). No Seu carinho, o Senhor habitava no meio de Seu povo na Tenda de Reunião (cf. Ex 40). Mesmo assim, Israel murmurava e se revoltava contra o seu Deus, preferindo o comodismo da escravidão à responsabilidade da liberdade concedida pelo Senhor: “O bando de estrangeiros que estava no meio deles foi assaltado por um incontrolado apetite, de modo que até os israelitas começaram de novo a lamentar-se e a dizer: ‘Quem nos dera comer carne! Estamos lembrados dos peixes que comíamos de graça no Egito, dos pepinos, melancias, melões, cebolas e alhos! Agora estamos definhando à míngua de tudo. Não vemos outra coisa senão maná’ (Nm 11,4ss).
Por este milésimo pecado, o Senhor respondeu dando o que o povo teimosamente desejava, até à indigestão mortal. Os modos e desejos de Israel são indigestos e mortíferos! “Uma vez que vos lamentastes aos ouvidos do Senhor , dizendo: ‘Quem nos dera comer carne! No Egito éramos felizes!’ Por isso o Senhor vos dará de comer carne. Não será apenas um dia que comereis, nem dois, nem cinco, dez ou vinte, mas o mês inteiro, até que a carne vos saia pelas narinas e vos cause náuseas. Pois rejeitastes o Senhor , que está no meio de vós, e vos lamentastes diante dele, dizendo: ‘por que saímos do Egito?’” (Nm 11,19-20.30).

Para pensar e rezar:
= Pense: O Senhor é um Deus exigente e ciumento: não nos aceita pela metade! É todo para nós e nos quer todo para Ele!
= Tem sido verdade na sua vida as palavras da Aliança: “Meu Amado é para mim e eu sou para o meu Amado”? Para quem é seu coração, seu afeto, sua prioridade de vida?
= Não esqueça: o princípio do caminho com o Senhor é ouvir... Ouvindo, conhecê-Lo e, conhecendo-O, amá-Lo! Ouve-se o Senhor na Escritura, na oração, na intimidade com Ele. E isto é possível vivendo na Sua comunidade, que é a Igreja.
= Você se abandona nas mãos do Senhor, ou deseja controlá-Lo, construindo “bezerros” que lhe deem segurança?
= Cuidado para que seus caprichos não levem você à indigestão, matando no seu coração a amizade com o Senhor Deus. Pense nisto!

  



IX. A tremenda dúvida: O Senhor está ou não conosco?


O povo partiu novamente e, em Rafidim, sedento e cansado do caminho, murmurou gravemente contra o Senhor. Trata-se de uma das mais graves crises da travessia do deserto. Eis o texto que narra este momento dramático do caminho de Israel: “Toda a comunidade dos israelitas partiu do deserto de Sin, seguindo as etapas indicadas pelo Senhor, e acamparam em Rafidim. Mas não havia água para o povo beber. Então o povo pôs-se a discutir com Moisés, dizendo: ‘Dá-nos água para beber!’ Moisés respondeu-lhes: ‘Por que vos meteis a discutir comigo? Por que tentais o Senhor?’. Mas o povo, sedento d’água, reclamava contra Moisés e dizia: ‘Por que nos fizeste sair do Egito? Para matar-nos de sede junto com nossos filhos e o gado?’ Moisés clamou ao Senhor, dizendo: ‘Que vou fazer com este povo? Por pouco que não me apedrejam’. O Senhor disse a Moisés: ‘Passa à frente do povo e leva contigo alguns anciãos de Israel. Pega a vara com que feriste o rio Nilo e caminha. Eu estarei na tua frente sobre o rochedo, lá no monte Horeb. Baterás no rochedo e sairá água para que o povo possa beber’. Moisés assim o fez na presença dos anciãos de Israel. Chamou o lugar com o nome de Massa e Meriba, por terem os israelitas discutido e tentado o Senhor, dizendo: ‘O Senhor está, ou não está, no meio de nós?’” (Ex 17,1-7).
Pense um pouco: Israel encontra-se em pleno deserto do Sinai, um deserto de altas montanhas rochosas, de uma solidão e aridez aterradoras. Sol, calor, poeira, pedregulhos, solidão, incerteza... E não há água! Como viver sem água? Como continuar o caminho? Israel olha para um lado e para o outro e não vê chance, não vê saída! A falta de perspectiva gera a angústia, a angústia engendra o desespero e o desespero leva ao irracional: murmuram contra Moisés e explodem: Moisés tem que encontrar uma solução: “Dá-nos água para beber!”
Aqui se pode perguntar: mas, qual a culpa de Israel? Observe o que já indiquei em postagens anteriores: o povo de Deus não reza, não se volta para o Senhor Deus, não clama ao Santo de Israel. Simplesmente seu olhar é rasteiro e raso: vê a situação grave, o desafio e só! Já Não vê o Senhor, não recorda do Senhor, não mais se dá conta de que foi o Senhor fidelíssimo e pleno de poder que o tirou do Egito! Nada! Na hora da crise, para Israel, Deus é o ausente, o que na prática não existe, o que não está no meio do Seu povo! Israel mata Deus no seu coração! Ficam diante de Israel só o deserto, a sede, a revolta e Moisés, o responsável por tudo: “Por que nos fizeste sair do Egito? Para matar-nos de sede junto com nossos filhos e o gado?” Israel não reza... E porque não reza não tem a santa lembrança de Deus no seu coração e na sua mente. Esquecido do Senhor, Israel é cego; só vê a superfície, a aparência, o imediato, como todo mundo vê! O povo eleito pelo Senhor teima em parecer com todos os outros povos...
Veja a atitude de Moisés: ante o deserto, a sede, o calor, a falta d’água e, mais gravemente, a murmuração revoltada do povo, ele reza, clama ao Senhor! E, por isso, experimenta o Senhor como presente, como atuante na sua vida.
O Senhor lhe ordena bater no rochedo do Horeb (=Sinai) e dali sairá a água. No mesmo Monte sagrado onde o Eterno dará a Torah, a Lei santa, Ele dá á água, saída de um dos rochedos daquela Montanha. Como á água, a Torah será a vida para Israel! E a água jorrou, saciando Israel, como jorrará a Torah saciando o coração do Povo santo de Deus! Mas, esse lugar recebe os nomes de Massa (Provocação) e Meriba (Discussão), pois aí Israel duvidou da presença fiel e eficaz do Senhor no seu meio: O Senhor está ou não conosco? O Senhor existe ou não para nós? Ele é um Deus presente ou apenas uma ideia sem consistência, um fantasma ilusório?
Mais tarde, o salmista, recordando este acontecimento, exortará o povo a escutar a voz do Senhor no hoje de cada geração, no meu e no seu hoje, no hoje da Igreja, (Sl 95[94]) e o Autor da Carta aos Hebreus retomará o tema com grande profundidade, alertando-nos a nós, cristãos, Israel novo, peregrino no deserto sequioso deste mundo: “Portanto, irmãos santos, participantes da vocação que vos destina à herança do céu, considerai o mensageiro e Sumo Sacerdote da fé que professamos, Jesus. Ele está credenciado diante Daquele que O constituiu, como também Moisés o foi em toda sua casa. E sua casa somos nós, contanto que permaneçamos firmes até o fim, professando intrepidamente nossa fé e jubilosos da esperança que nos pertence. Por isso, como diz o Espírito Santo: ‘Se ouvirdes hoje sua voz não endureçais vossos corações, como na Rebelião, como no dia da Tentação no deserto, onde vossos pais Me tentaram e me puseram à prova e viram Minhas obras durante quarenta anos. Por isso me indignei contra aquela geração e disse: tiveram um coração sempre transviado e desconheceram meus caminhos; assim jurei em minha cólera: não entrarão em meu repouso. Olhai, irmãos, que não haja entre vós um coração mau e incrédulo, que se aparte do Deus vivo. Antes animai-vos mutuamente cada dia durante todo o tempo compreendido na palavra hoje, a fim de que nenhum de vós se endureça com o engano do pecado. Porque fomos feitos participantes de Cristo na suposição de que até o fim conservemos a firme confiança do princípio”. (Hb 3,1-2.6-14).
Bela exortação: No caminho deste mundo, tanta vez deserto e aterrador, olhemos não mais Moisés, mas Jesus nosso Senhor e Salvador; recordemos aonde Ele nos conduz: à herança celeste! Por isso, a cada dia, procuremos distinguir Sua presença e ouvir Sua voz na vida miúda, no mundo do corre-corre, nas contradições e securas da vida! Hoje Ele nos vai falar! Quanto a nós, não endureçamos o coração como Israel no deserto, não percamos de vista o Senhor por causa da leviandade do nosso coração! “O Senhor está ou não no nosso meio?” - eis a pergunta sacrílega de Israel! Todos os dias, logo cedo, a Igreja nos exorta na Liturgia das Horas: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações!” Sim, Ele vai falar, hoje! E nós, muitas vezes, de coração duro, não escutamos e perguntamos: “O Senhor está ou não no nosso meio?”
Para terminar: Depois desta grave contenda, Deus ainda combateu Amalec em favor de Israel, seu filho amado, mas teimoso e descrente. As mãos erguidas de Moisés, suplicando a graça, fazem o povo vencer! (cf. Ex 17,8-16). Mas, nem assim o povo aprenderá a confiar!

Para pensar e rezar:
= Nas securas da vida, tenho sabido procurar o Senhor, olhar para Ele ou, ao invés, vejo somente a situação na sua superficialidade e, então, murmuro e descreio?
= Em que coloco minha certeza e esperança: nas circunstâncias da existência ou no Senhor?
= Diariamente, procure viver na presença de Deus, renovando sempre a consciência de que Ele está na sua vida, Ele é o Deus presente e atuante.
= Seu modo de ver é segundo Deus ou segundo o mundo?
= Pense: Segundo a tradição judaica aquele rochedo do qual brotou água para saciar o povo no deserto, acompanhou o povo durante todo o seu caminho no deserto. Esse rochedo é imagem do Cristo Jesus, de cujo lado saem a água do Batismo e o sangue da Eucaristia. Leia 1Cor 10,1-4; Jo 19,31-37).

  





VIII. Um povo esquecido e teimoso


Partindo de Mara (= amargura), o povo chegou a Elim: ali, esquecendo-se de tudo quanto vira o Senhor realizar em seu favor, esquecendo-se também das provações e da amargura da escravidão, o povo murmurou novamente: “Toda a comunidade dos israelitas pôs-se a murmurar contra Moisés e Aarão no deserto, dizendo-lhes: ‘Quem dera que tivéssemos morrido pela mão do Senhor no Egito, quando nos sentávamos junto às panelas de carne e comíamos pão com fartura! Trouxestes-nos ao deserto para matar de fome toda esta gente!’” (Ex 16,2s).
São os dois pecados fundamentais de Israel no deserto: a murmuração e o esquecimento: aquela é filha deste. Israel esquece facilmente as provas de amor do Senhor e, esquecendo-se já não vê o seu Deus, e tirando o Senhor de sua perspectiva, da sua vida concreta, murmura.
Observemos aqui a dinâmica da murmuração de Israel: primeiro é de uma má vontade impressionante: esquece o quanto sofria no Egito: sua humilhação, sua escravidão, os recém-nascidos jogados no Nilo! Ingrato para com Deus, mal-agradecido, chega a esnobar a obra amorosa do Senhor: era melhor termos morrido no Egito!
Israel sente saudades das míseras panelas de carne – carne de escravidão! – que comia no Egito! E, na sua leviandade, na sua estreiteza de visão, volta-se contra Moisés e Aarão: “Por que nos tirastes do Egito?” Ora, não foram Moisés e Aarão, mas o Senhor que o tirou do Egito!
No entanto, como já foi dito, a murmuração impede de ver com os olhos da fé, de contemplar na perspectiva de Deus! Israel é de memória curta: não é capaz, no momento de crise e escuridão, de recordar os momentos de luz em que Deus esteve ao seu lado!
Portanto, Israel é espiritualmente preguiçoso, medíocre: preferia o comodismo da escravidão ao desafio da liberdade! Este povo não sabia ainda que seus tempos e seus modos não são os tempos e modos do Senhor; tinha a cerviz dura e queria as coisas do seu modo! Por isso chegou a ser extremamente cruel na sua ingratidão! O Senhor, na sua misericordiosa paciência, deu-lhe o maná e, novamente, pôs o povo à prova: “O Senhor disse a Moisés: ‘Vou fazer chover do céu pão para vós. Cada dia o povo deverá sair para recolher a porção diária. Assim vou pô-lo à prova, para ver se anda, ou não, segundo a Minha lei. Mas no sexto dia quando prepararem o que tiverem trazido terão o dobro da coleta diária’” (Ex 16,4s).
Quanto ao maná, sinal do cuidado e do carinho do Senhor Deus para com o Seu povo, só poderia ser recolhido por um dia; é como o pão que o Senhor Jesus nos ensina a pedir: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje!” Assim, “Moisés lhes disse: ‘Ninguém guarde nada para amanhã” (Ex 16,19). Mas, não tem jeito: Israel é como eu, como você: é teimoso e desconfiado em relação a Deus; não consegue abandonar-se totalmente à providência do Senhor: “Alguns desobedeceram a Moisés e guardaram o maná para o dia seguinte; mas ele bichou e apodreceu!” (Ex 16,20). Não adiante: o que construímos como apego, como muleta, como falsa segurança, bicha, apodrece! Somente no Senhor está a vida perene; somente o Senhor é a rocha da nossa existência! Daí a queixa de Moisés, que é a queixa do Senhor Deus: “Até quando recusareis guardar Meus mandamentos e Minhas leis?” (Ex 16,28) – esta pergunta o Senhor nos faz! Quanto somos também nós teimosos e desconfiados em relação ao Senhor! Até quando?
Para terminar: “O Senhor ordenou que se encha um jarro de maná para guardá-lo, a fim de que as gerações futuras possam ver com que alimento vos sustentei no deserto, quando vos fiz sair da terra do Egito” (Ex 16,32) Eis: o Senhor não quer que Seu povo esqueça Suas obras na vida de seus fieis! Que vendo recordem, recordando creiam e crendo obedeçam e amem o Senhor no presente da vida! Também hoje, o Senhor deixa para a Sua Igreja, novo Israel, o perene maná, sinal máximo do Seu amor e da Sua presença no meio do Povo santo: a Eucaristia, alimento que o próprio Pai no dá como fonte de vida verdadeira, que não estraga e não bicha!

Para pensar e rezar:
= A raiz de todo o pecado é o esquecimento de Deus e de Suas obras em nosso favor. Procure hoje recordar, agradecido, todo o caminho que o Senhor o fez percorrer nesta vida. Recorde quantas vezes o Senhor mostrou sua presença em tantas situações da sua existência! Ele é o deus fidelíssimo; Nele se pode confiar!
= Seu coração é um coração fiel em relação ao Senhor ou, ao invés, é um coração velhaco e esquecido?
= O pecado, por triste que seja, deixa saudades, como as carnes do Egito... É preciso combater as marcas que o pecado deixou em nós. É preciso curar as lembranças, não alimentando a recordação saborosa e gozosa dos pecados cometidos. Lembre-se somente de uma coisa: de Jesus Cristo morto e ressuscitado por você!
= Muitos israelitas procuram fazer provisão e reserva de maná. Não confiam na providência de Deus. E você, confia? Procure responder com fatos e atitudes concretas!
= Lembre: o que construímos como apego, como muleta, como falsa segurança, bicha, apodrece!
= Para viver: procure fazer da Eucaristia perene e feliz memorial do grande dom de amor que o Senhor nos fez: o Seu Filho amado, nossa vida e salvação!

 





VII. A amargura da murmuração


Agora, acompanharemos algumas das etapas de Israel no caminho do deserto. Lembremo-nos: o caminho de Israel é o nosso caminho! Nunca percamos de vista a palavra da Escritura a respeito do Antigo Testamento: “Irmãos, não quero que ignoreis o seguinte: Os nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem e todos passaram pelo mar; na nuvem e no mar, todos foram batizados em Moisés; todos comeram do mesmo alimento espiritual e todos beberam da mesma bebida espiritual; de fato, bebiam de uma rocha espiritual que os acompanhava. Essa rocha era o Cristo. No entanto, a maior parte deles desagradou a Deus e, por isso, caíram mortos no deserto. Esses acontecimentos se tornaram símbolos para nós, a fim de não desejarmos coisas más, como eles desejaram. Não vos torneis idólatras, como alguns deles, segundo está escrito: “O povo sentou-se para comer e beber; depois, levantaram-se para se divertir”; nem nos entreguemos à prostituição como se entregaram alguns deles, vindo a morrer vinte e três mil num só dia; nem ponhamos à prova o Senhor, como fizeram alguns deles, os quais morreram, picados pelas serpentes; nem murmureis, como alguns deles murmuraram e, por isso, foram mortos pelo Exterminador. Estas coisas lhes aconteciam com sentido figurativo e foram escritas como advertência para nós, a quem chegou o fim dos tempos” (1Cor 10,1-11).
Ao sair do Egito o povo caminhou três dias rumo ao sul, sem encontrar água. Ao encontrá-la, era amarga e o povo murmurou: “Moisés fez partir Israel do mar Vermelho. Tomaram a direção do deserto de Sur. Caminharam três dias pelo deserto sem achar água. Chegando a Mara, não puderam beber a água de Mara, por ser amarga; por isso deram ao lugar o nome de Mara. O povo murmurou contra Moisés, dizendo: ‘Que vamos beber?’ Moisés clamou ao Senhor, e o Senhor lhe indicou um tipo de planta que ele jogou na água, e esta tornou-se doce. Foi ali que Ele deu ao povo uma lei e um direito, e os pôs à prova. Disse-lhes: ‘Se de fato escutares a voz do Senhor teu Deus, se fizeres o que é reto a Seus olhos, se deres ouvido a Seus mandamentos e observares todas as Suas leis, não te causarei nenhuma das enfermidades que causei aos egípcios, pois Eu sou o Senhor que te cura’” (Ex 15,22-26).
A murmuração será uma constante no comportamento de Israel, sinal de esquecimento, ingratidão e falta de fé, sinal de um coração velhaco e leviano! Que é murmurar? É reclamar, é em voz baixa ou no silêncio do coração criticar continuamente, lamentar o tempo todo, especular de mau ânimo como deveria ser e não é, o que deveria acontecer e não aconteceu, o que deveria ter e não há... Assim, se está sempre insatisfeito, sempre numa atitude de reivindicação e de má vontade.
A murmuração brota da incapacidade de contemplar, de pensar e sentir em profundidade, de descobrir o sentido por trás dos acontecimentos! Ela destrói a fé, destrói qualquer comunidade e envenena os corações. A murmuração azeda as relações numa família, no trabalho e, sobretudo, no ambiente de fé da comunidade de irmãos, que é a Igreja. Vê-se somente a casca, a superfície. Torna-se incapaz de ver a ação de Deus e Sua santa presença por trás dos acontecimentos e das pessoas...
Israel murmurará contra a sede, contra a fome, contra os perigos da guerra. Também serão uma constante as provas pelas quais o Senhor fará Israel passar, para que ele conheça o fundo de seu próprio coração: somente se conhecendo a si, Israel será capaz de conhecer realmente o seu Deus e entrar em comunhão com ele: “Lembra-te de todos os caminhos que o Senhor teu Deus te fez andar nestes quarenta anos pelo deserto, para te humilhar e te provar, para conhecer tuas intenções, e saber se observarias ou não os mandamentos. Reconhece, pois, em teu íntimo que, como um homem corrige o filho, assim o Senhor teu Deus te corrige. Guarda os mandamentos do Senhor teu Deus, para andares por seus caminhos e o temeres. Guarda-te bem de esquecer o Senhor teu Deus, deixando de observar os mandamentos, os decretos e as leis que hoje te prescrevo. Ele, que te conduziu através do deserto grande e terrível, cheio de serpentes venenosas e escorpiões, de terra árida e sem água, fez brotar água de rocha duríssima 16 e te deu para comer no deserto o maná que teus pais não conheciam, a fim de te humilhar e provar, visando a teu bem futuro” (Dt 8,2.5s.11.15s).

Para pensar e rezar:
= Neste deserto da vida, como tenho olhado a realidade ao meu redor: com os olhos da fé ou, simplesmente, numa dimensão meramente deste mundo?
= Tenho murmurado diante das situações e pessoas que me colocam em dificuldade?
= Pense nisto: murmuro quando vejo as coisas simplesmente na minha medida. Só há um modo de ver e avaliar à medida do Senhor: rezando! Compare a atitude do povo, que murmura com a atitude de Moisés, que reza... Quem reza volta-se para Deus e Nele encontra direção e esperança; quem não reza se perde na murmuração e na superficialidade de visão. Quem reza se salva porque se liberta de si próprio! Prometa nesta Quaresma largar o vício da murmuração!
= Israel estava no deserto sem água; era sua própria existência que estava em perigo. Tratava-se de uma situação grave. Ao invés de rezar, murmurou...
= Pense: as dificuldades da vida são também provas para conhecermos o que temos no coração! O que há no seu coração? Pense diante do Senhor Deus!
= Deus deseja curar seu coração ferido: “Se de fato escutares a voz do Senhor teu Deus, se fizeres o que é reto a Seus olhos, se deres ouvido a Seus mandamentos e observares todas as Suas leis, não te causarei nenhuma das enfermidades que causei aos egípcios, pois Eu sou o Senhor que te cura”. Que tal dar realmente espaço para Ele na sua vida?
= Você compreende pedagogia de Deus na sua vida? Lembre que Ele te educa como um pai educa o seu filho! Se você rezar, compreenderá...
= Releia cuidadosamente os textos bíblicos acima...
= Uma última coisa: essa planta que adocicou a água amarga é imagem da árvore da cruz que, tocando a tanta amargura deste mundo, tornou-se doce pelo amor do Coração do nosso bendito e santo Deus Salvador Jesus! Que Ele toque e torne doce o seu coração tanta vez amargurado e amargo! Suplique ao Senhor essa cura! Da murmuração e da amargura...

 





Ateus por engano...


Caro Internauta, aí está o que apareceu na www.acidigital. Leia com atenção. Neste Blog já tive oportunidade de falar de Dawkins e algumas ideias suas. Note que voltamos sempre ao mesmo ponto: Não se pode provar que Deus existe ou que Deus não existe! Há indícios, não provas! Outra insistência minha: esses cientistas quando falam de Deus, na verdade falam de uma ideia torta, caricatural de Deus! No texto abaixo, a intervenção do Arcebispo é perfeita: “Não estou falando de Deus como um extra (= algo que vem de fora da criação), mas como o centro disso”... E aí o ateu se confunde, se rende! Ele não tem certeza do ateísmo dele! Aliás nenhum ateu honesto por ter certeza do seu ateísmo. E o crente honesto, pode ter certeza da sua fé? Pode! Por quê? Porque é uma certeza de fé! E o ateu não pode ter uma certeza de fé? Não! Porque senão já não seria ateu, mas crente de uma religião sem Deus! Seria uma contradição ambulante! Recordo que neste Blog há vários textos sobre este tema. Só para recordar alguns, recentes: os textos que escrevi sobre Stephen Hawkings e sobre o Nome de Deus... Abaixo o texto a que estou me referindo:

Um dos mais famosos ateus do mundo, o britânico Richard Dawkins, admitiu durante um debate na Universidade de Oxford, que não pode ter certeza de que Deus não existe.
No debate sobre a natureza e a origem do homem, Dawkins disse ao máximo líder anglicano, o Arcebispo Rowan Williams, que prefere declarar-se agnóstico antes que ateu.
O debate, que fechou uma semana no qual se falou muito sobre a liberdade religiosa e a vida pública na Grã-Bretanha, realizou-se no Sir Christopher Wren’s Sheldonian Theatre e foi transmitido ao vivo através da Internet.
Em um momento do diálogo, o Arcebispo disse ao catedrático que se sentia "inspirado pela elegância" de sua explicação sobre a origem da vida com a qual concordava em vários aspectos.
Conforme assinala o Daily Telegraph, o professor Dawkins disse ao Arcebispo que "o que não posso entender é por que você não é capaz de ver a extraordinária beleza da ideia da vida começando de um nada. Isso é algo elegante, formoso. Por que quer poluí-lo com uma idéia confusa como Deus?"
Williams respondeu que estava "de acordo completamente com o elemento da beleza" no argumento de Dawkins mas precisou: "Não estou falando de Deus como um extra mas como o centro disso".
Dawkins surpreendeu logo a todos afirmando que não estava 100% seguro de que não existisse um criador. Então o filósofo Sir Anthony Kenny, que mediou o debate perguntou: "Por que você não diz então que é um agnóstico?", e Dawkins respondeu que era assim.
Incrédulo Anthony Kenny replicou: "Mas se diz que você é o ateu mais famoso do mundo...", ao qual Dawkins respondeu que está "6,9 de sete" seguro daquilo que acreditava.
"Acredito que a possibilidade de que exista um criador sobrenatural é muito, mas muito baixa", acrescentou Dawkins.
Logo o debate se deu em torno da possibilidade de que o homem tivesse evoluído de ancestrais não humanos, mas que chegaram à realidade atual de seres "à imagem e semelhança de Deus", conforme afirmou o Arcebispo.

 





VI - “No deserto o Senhor te educou”


O deserto para o qual o Senhor conduz Israel após tirá-lo da escravidão tem um sentido profundíssimo: “Lembra-te de todos os caminhos que o Senhor teu Deus te fez andar nestes quarenta anos pelo deserto, para te humilhar e te provar, para conhecer tuas intenções, e saber se observarias ou não os mandamentos. Ele te afligiu, fazendo-te passar fome e depois te alimentou com o maná, desconhecido por ti e por teus pais, para te mostrar que nem só de pão vive o homem mas de tudo que procede da boca do Senhor. Tuas vestes não se gastaram pelo uso nem os pés se encheram de calos durante os quarenta anos. Reconhece, pois, em teu íntimo que, como um homem corrige o filho, assim o Senhor teu Deus te corrige” (Dt 8,2-5).
O deserto é o lugar da prova, do desalento, para que o homem perca suas muletas, suas falsas seguranças e, assim, aprendendo a esperar somente em Deus, descubra quem é.
O deserto é o lugar no qual Israel descobrirá quem é realmente e quem é o seu Deus! Uma experiência dolorosíssima! O tempo no deserto é tempo da formação do povo e também, misteriosamente, tempo de núpcias, tempo de provação e de graça!
A experiência do deserto será paradigma de toda autêntica experiência do Deus vivo. Deus é assim: provando, colocando em crise, desposa eternamente: “Assim diz o Senhor: ‘Lembro-me de ti, do amor de tua juventude, do carinho do teu noivado, quando me seguias pelo deserto, por uma terra agreste. Israel era sagrado para o Senhor, as primícias de sua colheita; todos os que o devoravam, tornavam-se culpados, a desgraça caía sobre eles’ –oráculo do Senhor” (Jr 2,2s).
O caminho de Israel no deserto é o nosso caminho nesta vida e neste mundo, caminho de todo o crente, caminho que não é turismo, mas peregrinação: os caminhos, os modos, os tempos e o destino são determinados pelo Senhor.
Eis o que é ser cristão: deixa-se o Egito do pecado nas águas do Mar Vermelho da pia batismal, atravessa-se o deserto da conversão a Deus, para chegar-se à Terra Prometida, que é a comunhão com o Cristo Jesus, nesta vida e na outra: “Com alegria, agradecei a Deus Pai, que vos tornou capazes de participar da herança dos santos no reino da luz. Que nos livrou do poder das trevas e transportou ao reino de seu Filho amado, no qual temos a redenção: a remissão dos pecados” (Cl 1,12ss).
O próprio Senhor Jesus quis experimentar este deserto de Israel e vencer onde Israel fracassara:
(1) À fome do povo e à sua conseqüente murmuração contra o Senhor, à qual o Senhor Deus responde com o dom do maná (cf. Ex 16; Nm 11), é contraposta a tentação diabólica de mudar as pedras em pão (cf. Mt 4,3; Lc 4,3). A resposta de Jesus tem um profundo sentido teológico: “Ele te afligiu, fazendo-te passar fome e depois te alimentou com o maná, desconhecido por ti e por teus pais, para te mostrar que nem só de pão vive o homem, mas de tudo que procede da boca do Senhor” (Dt 8,3). Em outras palavras: nas suas experiências de pobreza e de insuficiência, o homem deve recordar que ele não se sustenta realmente com os pães deste mundo, mas com a palavra que sai da boca de Deus; palavra viva e eficaz, palavra que se fez carne e habitou entre nós, palavra que é o próprio Jesus!
(2) À sede de Israel e ao protesto em Massa, que levou Moisés a pecar tentando a Deus (cf. Ex 17,1-7), corresponde a sedução diabólica de obrigar Deus ao milagre: “Se és filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Porque está escrito: A teu respeito ordenou a seus anjos e eles te carregarão nas mãos, para não tropeçares em alguma pedra” (Mt 4,6). A resposta de Jesus é ressonância da advertência de Dt 6,16, que se refere a Massa: “Não tenteis o Senhor vosso Deus, como o tentastes em Massa”.
(3) Finalmente, a suprema tentação de substituir o verdadeiro Deus, invisível, misterioso e incontrolável, por um ídolo manipulável e que desse segurança (o bezerro de ouro - Ex 32; os deuses de Canaã - Ex 23,20-33; 34,11-14). A esta, corresponde a tentação a Jesus: “Tudo isso te darei se, caindo por terra, me adorares” (Mt 4,9). A resposta de Jesus, recorda, mais uma vez, o ensinamento do Deuteronômio: “Temerás o Senhor teu Deus, a ele servirás e pelo seu nome jurarás” (6,13).
Assim, Jesus vence estas tentações do Povo eleito e nossas! Santo Agostinho ensinar-nos-á a respeito: “O Senhor nos representou em sua pessoa quando quis ser tentado por Satanás. Em Cristo também tu eras tentado porque ele assumiu a tua condição humana, para te dar a sua salvação; assumiu a tua morte para te dar a sua vida; assumiu os teus ultrajes, para te dar a sua glória. Por conseguinte, assumiu as tuas tentações, para te dar a sua vitória. Se nele fomos tentados, nele também vencemos o demônio. Consideras que o Cristo foi tentado e não consideras que ele venceu? Reconhece-te nele em sua tentação, reconhece-te nele em sua vitória! O Senhor poderia impedir o demônio de aproximar-se dele; mas, se não fosse tentado, não te daria o exemplo de como vencer na tentação” (Santo Agostinho - Comentários sobre os Salmos).

Para pensar e rezar:
= Os desertos que atravessamos são como as noites desta vida... Por qual deserto você está atravessando agora? Como tem reagido? Tem caminhado na presença do Senhor?
= Lembra-te: o Senhor te faz atravessar o duro deserto para te libertar de ti mesmo, de tuas escoras... Ele te faz saber, no sofrimento, o que tens no teu coração... Quem és tu? Do que és capaz? Até onde amas o teu Deus? Até onde Nele confias?
= Se no deserto o Senhor te prova, aí também te desposa, na medida em que te entregares a Ele...
= Para não morreres no deserto, para nele não te extraviares, pensa no que te diz o Senhor: (1) Tu não viverás de verdade se viveres somente do que alimenta teu coração neste mundo! Alimenta-te, isto sim, da Palavra de Deus; vive nela, e viverás! (2) Não deves endeusar bezerros de ouro, deuses fáceis e falsos! Adorarás só e exclusivamente o Senhor teu Deus! A Ele te entregará, Nele confiarás, no Seu santo Nome colocarás toda a tua esperança. (3) Nunca porás à prova o teu Deus! Ele não se rebaixa a isto, não se submete às provas dos filhos de Adão! Assim, temerás com amor o teu Deus! Ele é Santo, Ele é Único, Ele é Deus!
= Retome as palavras de Santo Agostinho e medite nelas...

 





Sobre o Nome de Deus


O Senhor Deus revelou Seu Nome a Moisés do meio da sarça ardente. O próprio fato de revelar-Se escondendo-Se no meio do fogo devorador já revela o caráter misterioso, indisponível de Deus. É impressionante: ao mesmo tempo em que Se revela e no ato mesmo de revelar-Se Ele Se esconde.
Quanto ao Nome que ele pronuncia como revelação de Si próprio, é todo Ele um mistério verdadeiramente impressionante. "Eu sou o que sou", Ele diz. Pensemos nas traduções que são propostas, além desta: "Eu sou 'o que sou'!" ou "Eu sou o que serei!"... Em todas estas variantes há mais um esconder-Se, misterioso e soberano, que um revelar-Se! Pensemos um pouco:
"Eu sou o que sou" - Eu sou! Por que queres saber o meu Nome? Sou o que sou para Mim, soberanamente. Sou o que É, e basta! Sou! Não recebi o ser de ninguém, não mudo, não cesso jamais de ser! Sou. Totalmente fiel a Mim mesmo, imutável, pleno, perfeito, totalmente cheio de Mim mesmo, totalmente Senhor de Mim mesmo, totalmente eterno e infinito no ser! Sou o que sou e o Meu ser não pode ser apreendido por ti. Sou o que sou para Mim e tu não saberás jamais o que sou, pois não podes penetrar no Meu mistério. Eu sou. E basta! Eu sou Eu e o Meu Eu não pode ser apreendido e imaginado por ti.não Caibo no que imaginas, no que tu falas, no que teus sentidos podem apreender, no que tu consegues raciocinar! Insisto: Eu sou e como Eu não há nada, não há ninguém, não há termo de comparação! Eu sou. Tremendo! Vivo! Infinito! Inefável! Verdadeiro! Eterno! Santo!
"Eu sou 'o que sou'" - O que sou! Olho para Mim mesmo e sou um Abismo infinito, inabarcável! Eu sou. Tudo procede de Mim, como de uma fonte ancestral, cujas origens são a eternidade e as entranhas de um Mistério abissal. O que sou? O que sou! Totalmente único, incomparável, singular! Por isso não é possível dizer-te quem sou com conceitos! Uma só coisa saberás realmente de Mim: que Eu sou e fora de Mim nada pode ser, a não ser como livre, amoroso e soberano transbordamento do Meu ser. Assim, podes chamar-Me simplesmente de "O que é". E quando te perguntarem o que isto significa precisamente, deverás confessar humildemente tua ignorância! Lembra-te: Eu te coneço, mas tu não podes conhecer-Me realmente, enquanto não podes nem poderás nunca - nem na minha Glória - abarcar a Minha eternidade infinita!
"Eu sou o que serei" - Sou plenamente imutável, totalmente fiel a Mim mesmo. O que sou hoje serei por toda a eternidade. Por isso mesmo, sou totalmente confiável, totalmente inabalável, totalmente coerente Comigo mesmo. O que fui, Eu sou, o que Sou, Eu serei e, no entanto, nem fui nem serei, porque não tenho passado nem futuro. Simplesmente, Eu sou!
Mas "Eu sou o que sou" e "Eu sou o que serei" também para ti. Em outras palavras: tu saberás de Mim somente o que Eu for para ti, o que Eu a ti revelar de Mim. Não poderás saber verdadeiramente de Mim de modo simplesmente frio, teórico, descomprometido, neutro. Não! Somente saberás um pouco de Mim naquilo que experimentares que Eu sou e Eu serei para ti!
Assim, o santo Nome do Senhor Deus pode ser sintetizado na expressão "Eu sou"! Por isso mesmo, o Nome santíssimo revelado na Sagrada Escritura, IHWH (deve-se ler: Senhor ou Adonai), não é o nome de uma divindade, mas o único Nome com o qual Deus pode ser chamado. IHWH ao que tudo indica deriva da raiz hawah, que evoca "ser". Poderíamos dizer, então, que IHWH significa "o que é", o - perdoe-me o neologismo, mas não encontro outra palavra - o "Sente", isto é, o que É e continuamente está Sendo!
Mas, no diálogo do Senhor Deus com Moisés há mais. Logo após revelar o Seu Nome, negando-Se a revelá-Lo, o Senhor diz: "Eu sou o Deus de Abaão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó!" em outras palavras: esse Deus que é tão Ele, que é absolutamente diverso de tudo e totalmente incompreensível, revela-Se realmente a nós, é capaz de dar-Se, de estabelecer reais relações conosco, de comprometer-Se e compadecer-Se de suas criaturas, de interagir com elas! Quando o Senhor santo e bendito diz ser o "Deus de Abraão", não só está declarando ser o Deus adorado por Abraão, mas também está afirmando ser o Deus que quis "pertencer" a Abraão, quis ligar Seu Nome a seu servo Abraão, pobre e ínfima criatura. Surpreendente: o Deus mais transcendente é também Aquele capaz decentrar nas histórias humanas, de envolver-Se com os filhos de Adão... E este é mais um motivo para admirarmo-nos, para reconhecer quão pouco previsível é o Senhor na sua exuberância de ser e amar!
Por tudo isto, é necessário que os crentes, estudados ou não, retomem o profundo respeito, o profundo pudor ao falar de Deus e de quanto a Ele se relaciona! Uma das tristezas do nosso tempo é a perda do sentido da santidade de Deus, mesmo entre os cristãos, mesmo entre tantos dos seus ministros! O resultado é a deturpação, a caricatura de um deus à nossa medida, um ídolo miserável, que não serve para nada, não nos salva, não sacia o nosso coração!
Poder-se-ia perguntar: Deus não diminuiu essa distância, essa "outridade", ao fazer-se homem, ao manifestar-Se pessoalmente em Jesus? Este é um outro texto, um outro artigo... Mais para frente trato disso...







V. Salvo por puro amor


Israel deverá saber que a libertação do Egito foi essencialmente uma obra de amor – como você, cristão, foi libertado em Cristo da treva da morte por puro e gratuito amor: “Quando Israel era um menino, eu o amei e do Egito chamei meu filho” (Os11,1). “Ele feriu o Egito em seus primogênitos, porque o seu amor é para sempre. E fez sair Israel do meio deles, porque o seu amor é para sempre” (Sl 136,10s). Amor surpreendente, tão apaixonado que fere os primogênitos do Egito! E, no entanto, o Senhor ama a toda criatura! Um dos textos judeus da narrativa da Páscoa diz que quando o Senhor afogou os egípcios, os anjos, ao verem os corpos dos soldados de faraó boiando no Mar Vermelho, cantaram e bateram palmas. Então o Senhor os repreendeu: "Como podeis vos alegrar quando minhas criaturas perecem?" Mistério! Insisto: não se pode compreender o Deus santo; Ele não se enquadra na nossa lógica!
A libertação do Seu povo da servidão no Egito será a grande obra do Senhor em favor do seu povo, a obra fundante da identidade de Israel. A partir de agora, o Senhor apresentar-se-á sempre como o Deus libertador, o que está aí, aí para salvar: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te libertou do Egito, do antro de escravidão. Não terás outros deuses além de mim” (Ex 20,2s). Sempre que Israel precisar recordar a identidade do seu Deus e sua própria identidade mais profunda, deverá recordar a saída do Egito, a Páscoa.
O Senhor instituiu a celebração pascal como memorial perene do seu amor e fidelidade, para que Israel possa sempre encontrar sua força e inspiração na celebração de tudo quanto o Senhor fez em seu favor. Na mentalidade judaica, o memorial é um rito no qual, pelas palavras, gestos e símbolos da celebração, torna-se realmente presente e atuante o acontecimento celebrado. Assim sendo, celebrando tal memorial, Israel deverá sempre recordar o amor atuante do seu Deus, um Deus comprometido e que, teimosamente, age na noite, nas noites da vida! Este recordar é estrutural na tradição judeu-cristã. Nossa fé vive de memorial, do tornar realmente presente o acontecimento libertador do passado... Esquecer é sinal de leviandade, de superficialidade. Fazer memorial é tornar presente e atuante o que o Senhor fez em nosso favor, encontrando aí inspiração e força para o futuro: “Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor, que haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua” (Ex 12,14). “Quando o Senhor teu Deus te introduzir na terra que jurou a teus pais, Abraão, Isaac e Jacó, dar a ti, com cidades grandes e belas que não edificaste, casas cheias de toda espécie de bens que não acumulaste, cisternas já escavadas que não cavaste, vinhas e oliveiras que não plantaste; e quando comeres e te fartares, guarda-te de esquecer o Senhor que te libertou do Egito, do antro de escravidão. Temerás o Senhor teu Deus, a ele servirás e pelo seu nome jurarás. Não seguirás outros deuses, dentre os deuses dos povos vizinhos, porque o Senhor teu Deus, que mora no meio de ti, é um Deus ciumento. Não suceda que a cólera do Senhor  teu Deus, inflamando-se contra ti, venha a exterminar-te da face da terra. Guardai com grande cuidado os preceitos do Senhor  vosso Deus, os mandamentos e as leis que vos dá. Faze o que é reto e bom aos olhos do Senhor para que sejas feliz e possas entrar e tomar posse da boa terra, da qual o Senhor jurou a teus pais que haveria de expulsar todos os inimigos, como ele mesmo disse. Quando amanhã o filho te perguntar: ‘Que significam estes mandamentos, estas leis e estes decretos que o Senhor nosso Deus nos prescreveu?’ então responderás ao filho: ‘Nós éramos escravos do Faraó e o Senhor nos tirou do Egito com mão poderosa. O Senhor fez à nossa vista grandes sinais e prodígios terríveis contra o Egito, contra o Faraó e contra toda sua casa. Libertou-nos de lá para nos conduzir à terra que, com juramento, prometera a nossos pais. O Senhor mandou que cumpríssemos todas estas leis e temêssemos o Senhor nosso Deus, para que fôssemos sempre felizes e nos conservasse vivos, como nos faz hoje. Seremos justos, se guardarmos os seus mandamentos e os observarmos diante do Senhor nosso Deus, como ele nos mandou’” (Dt 6,10-25).

Ora, otudo quanto o Senhor fez por Israel era preparação para a nossa Páscoa em Cristo. Assim, raiz e cume de todo memorial é a Eucaristia, na qual o Novo Israel, que é a Igreja, celebra a Páscoa definitiva: com Cristo e em Cristo, saímos da morte do pecado, atravessamos o Mar Vermelho das águas batismais e começamos a travessia no deserto deste mundo para a Terra Prometida do céu. Porque Cristo passou da condição de Servo que, por nosso amor, assumiu nesta vida, atravessando o Mar da morte e entrando na Terra Prometida da Glória do Pai, nós também, por Ele e com Ele, vamos fazendo nossa Páscoa na vida de cada dia e celebrando-a realmente em cada Eucaristia.
Assim começa a história de Israel com o seu Deus, um Deus que ele vai conhecendo à medida que o experimenta na sua vida!

Para pensar e rezar:
= Medite neste textos: Ex 14 – 15; Sl 114(113A); Sl 30(29); Eclo 2
= O Senhor também te libertou, fazendo-te passar nas águas do Batismo.
= Tu deves celebrar dominicalmente esta libertação, participando do Sacrifício eucarístico, em que o Cordeiro pascal torna perenemente presente a Sua oferta ao Pai por nós!
= A salvação é dom, é amor gratuito de Deus. É preciso abrir humildemente o coração para acolher tal dom: não é direito; é graça!

 






IV. Um Deus que desconcerta


Retomemos o texto de Ex 15. É uma perícope tremenda!
“Em seguida, Moisés e Aarão apresentaram-se ao Faraó e lhe disseram: ‘Assim diz o Senhor Deus de Israel: Deixa partir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto’. Mas o Faraó respondeu: ‘E quem é o Senhor para que lhe deva obedecer, deixando Israel ir? Não conheço o Senhor, nem deixarei Israel partir’. Eles disseram: ‘O Deus dos hebreus marcou um encontro conosco. Deixa-nos ir a três dias de viagem no deserto, para oferecermos sacrifícios ao Senhor nosso Deus. Do contrário, a peste e a espada nos atingirão’. Mas o rei do Egito lhes disse: ‘Por que vós, Moisés e Aarão, levais o povo a transcurar os trabalhos? Ide para vossas tarefas!’ E o Faraó acrescentou: ‘Eles já são mais numerosos que a população local, e vós quereis fazê-los interromper suas tarefas?’ Naquele mesmo dia o Faraó ordenou aos inspetores do povo e aos capatazes, dizendo: ‘Não forneçais mais palha a esta gente para fazer tijolos, como antes fazíeis. Que eles mesmos busquem a palha. Mas exigi a mesma quantia de tijolos de costume, sem tirar nada. São uns preguiçosos, e por isso reclamam: ‘Queremos ir oferecer sacrifícios ao nosso Deus’. Carregai estes homens com mais trabalho, para que estejam ocupados e não dêem ouvidos a palavras mentirosas’.
Os inspetores e os capatazes foram, pois, dizer ao povo: ‘Assim diz o Faraó: Não vos darei mais a palha. Devereis ir buscar a palha onde a puderdes encontrar. Em nada, porém, será diminuída a vossa tarefa’. O povo dispersou-se por todo o Egito em busca de palha. Mas os inspetores pressionavam-nos dizendo: ‘Terminai a tarefa marcada para cada dia, como quando havia palha’. Castigaram os capatazes israelitas que os inspetores do Faraó haviam nomeado, alegando: ‘Por que nem ontem, nem hoje, completastes a quota costumeira de tijolos?’
Os capatazes israelitas foram queixar-se com o Faraó, dizendo: ‘Como podes proceder assim com teus servos? Não se fornece palha a teus servos, e nos mandam fazer tijolos. Nós somos açoitados, mas o culpado é o teu povo’. O Faraó respondeu: ‘Sois mesmo uns preguiçosos e por isso dizeis: ‘Queremos ir oferecer sacrifícios ao Senhor’. E agora, ide trabalhar! Não vos será dada a palha, mas devereis produzir a mesma quantia de tijolos’.
Os capatazes israelitas se viram em má situação com a ordem de não diminuir em nada a quota diária de tijolos. Encontraram-se com Moisés e Aarão, que os estavam esperando na saída do palácio do Faraó, e lhes disseram: ‘Que o Senhor vos examine e julgue: vós nos tornastes odiosos diante do Faraó e dos seus servidores e lhes pusestes na mão a espada para nos matar’.
Então Moisés voltou-se para o Senhor , dizendo: ‘Meu Senhor, por que maltratas este povo? Para que foi que me enviaste? Desde que fui ter com o Faraó para lhe falar em teu nome, ele maltrata o povo, e tu nada fazes para libertá-lo’” (Ex 5).
Recordemos que foi contra a vontade do próprio Moisés que Deus o enviou ao faraó. Vale a pena recordar em Ex 3 o penoso diálogo de Moisés com Deus. O Senhor força o pobre homem; Moisés tenta escapar dando mil justificativas. E Deus termina por irar-se com ele! Moisés, por fim, encurralado pelo Senhor, cede! E Deus previne que a tarefa não será fácil: “Bem sei que o rei do Egito não vos deixará partir, se não for obrigado por mão poderosa. Mas eu estenderei minha mão e castigarei o Egito com toda sorte de prodígios que farei no meio deles. Depois disso, vos mandará sair” (Ex 3,19-20). Pois bem, Moisés obedece e vai; arrisca a própria vida a apresenta-se ao faraó. E o resultado é uma catástrofe: o rei do Egito não somente não deixa o povo partir, como piora a situação, aumentando a carga de trabalho e o peso da escravidão... É de se perguntar: Onde está Deus? Por que age assim? Por que permite a dor e o sofrimento? Por que seus caminhos nos são tão incompreensíveis?
E, pior ainda: os próprios filhos de Israel ficam indignados contra Moisés e Aarão: “Que o Senhor vos examine e julgue: vós nos tornastes odiosos diante do Faraó e dos seus servidores e lhes pusestes na mão a espada para nos matar”. Imagine a solidão, a angústia, o sentimento de frustração de Moisés! Ter-se-ia enganado? Será que fora ilusão aquele chamado de Deus? Será que Deus é mesmo poderoso? Será que é fiel e se pode realmente confiar nEle? Perguntas de Moisés... Perguntas tão nossas em tantas circunstâncias da vida...
Moisés desabafa, com palavras de cortar o coração: “Meu Senhor, por que maltratas este povo? Para que foi que me enviaste? Desde que fui ter com o Faraó para lhe falar em teu nome, ele maltrata o povo, e tu nada fazes para libertá-lo!”
Sobre estas palavras vale a pena notar duas coisas: (1) Moisés não compreende as razões do Senhor; sente-se decepcionado, quase que traído por Aquele que o obrigou a abraçar missão tão difícil e tão sem chance de sucesso... E, no entanto, não desobedece, não se revolta... (2) Moisés reza! Sua queixa não é murmuração, não é reclamar de si para consigo, mas é um suspiro, um gemido, uma angústia derramada diante de Deus! Isto deveríamos aprender: a nunca murmurar, nunca falar de nós para nós, mas apresentar ao Senhor o nosso clamor! Rezar a alegria e a tristeza, a dor e a esperança, rezar nos momentos de luz e de profunda escuridão... Rezar sempre! Só assim perceberemos Deus em todas as situações de nossa vida, ainda que não compreendamos o agir desse Deus Santo demais, Outro demais, Misterioso demais! Como se compreende Deus? Calando o coração, dobrando o joelho, baixando a cabeça, abandonando-se...

Para refletir e rezar:
= Que missão o Senhor me confiou neste mundo? Que apelos me faz?
= Tenho tido a coragem da fé, saindo de mim e de meus planos para abraçar o plano do Senhor para mim? Sei dizer como Santa Teresa de Jesus: “Vossa sou, para vós nasci. Que quereis fazer de mim?”
= Nos momentos de escuridão, de incerteza, de sentimento doloroso da ausência de Deus, como reajo: rezo e espero, mais que o vigia pela aurora ou, ao invés, rebelo-me e penso: “Deus não existe”?
= Sei abandonar-me nas mãos do Senhor? Que limites, que condições tenho colocado para minha fé em Deus? Lembremo-nos: Deus nos quer por inteiro, com uma confiança absoluta nEle! Só esta atitude nos tira de nós mesmos e nos liberta! Pense nisto!

 





III. Salvo de modo maravilhoso



É no mais profundo da miséria de Israel que Deus vai se revelar ao seu povo e este irá aprender a conhecê-lo: “O Senhor disse a Moisés: “Eu vi a opressão de meu povo no Egito, ouvi os gritos de aflição diante dos opressores e tomei conhecimento de seus sofrimentos. Desci para libertá-los das mãos dos egípcios e fazê-los subir desse país para uma terra boa e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel” (Ex 3,7s).
O Senhor um Deus que liberta: não tolera a escravidão de seus fiéis: somente alguém livre pode entrar em relação efetiva com este Deus... Por isso ele liberta: liberta para a comunhão Consigo! Libertou Israel e nos liberta. Escravos dos senhores deste mundo – sejam eles quais forem – jamais poderemos entrar numa verdadeira comunhão com Deus!
Ele se revelará como o Deus próximo, o Deus que desce, aquele que está aí para salvar: “Moisés disse a Deus: ‘Mas, se eu for aos israelitas e lhes disser: ‘O Deus de nossos pais enviou-me a vós’, e eles me perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’ que lhes devo responder? Deus disse a Moisés: ‘Eu sou aquele que sou. Assim responderás aos israelitas: ‘Eu sou’ envia-me a vós’ Deus disse ainda a Moisés: ‘Assim dirás aos israelitas: O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó, envia-me a vós. Este é o meu nome para sempre, e assim serei lembrado de geração em geração” (Ex 3,13ss).
O nome que Deus dá a si próprio, nesta perícope, é de sentido muito incerto. A palavra IHWH, ao que tudo indica, deriva do verbo hebraico hawah (ser, estar presente, ser atuante), Assim, apresentaria um sentido bastante complexo, que implicaria várias atitudes de seus fiéis:
·      Confiança certa: Eu estou aqui convosco de tal modo que podeis contar comigo. Até caminhando no vale da morte, podeis confiar em mim, que estou aqui! Até quando fugis de mim, duvidando, gritando ou emudecidos, podeis saber: Eu estou aqui convosco, ainda que vós não me reconhecêsseis.
·      Disponibilidade: Eu estou aqui convosco, de tal modo que tendes que contar comigo, quando e como quero - talvez até em momento e de modo que vos incomode. Pode ser que haja situações em vossos caminhos nas quais não queríeis lembrar-vos que eu estou aqui convosco ou nas quais preferiríeis outro deus!
·      Exclusividade: Eu estou aqui convosco, de tal modo que deveis contar unicamente comigo como aquele que pode estar próximo de vós e vos salvar. Contar comigo exige de vós a decisão clara de levar a sério que eu sou o único para vós: só em mim podeis e deveis encontrar o verdadeiro amor, a verdadeira bondade e a verdadeira vida!
·      Ilimitação: Eu estou aqui convosco de tal modo que minha proximidade não tem limites de lugar, tempo ou instituição. Quando estou aqui convosco, posso estar também com vossos inimigos. Minha proximidade transcende a terra, sobre a qual viveis e da qual, muitas vezes, vos fazeis o centro. Sequer a morte é limite para mim e não pode limitar minha vitalidade.
Uma coisa é certa: o Deus de Israel aparece numa total liberdade e gratuidade: um Deus nômade, indomável! Israel jamais haverá de penetrar até o fundo no mistério de sua realidade, de modo que o seu Nome nunca poderá ser completamente compreendido, será sempre “misterioso”: é o Deus escondido que, mesmo pronunciando-se, é Silêncio! Ele é o Deus existente, em contraste com os ídolos, que são nada! Deus surpreendente, este: tão transcendente e tão próximo: ver-me-eis em meu agir! Por isso mesmo, não se pode brincar com o Seu santo Nome, nem deveríamos pronunciá-lo à toa! Seria bom seguir o costume dos judeus, de Jesus e dos apóstolos: onde aparece o Nome (IWHW), lê-se “Senhor”! Por isso mesmo a Igreja proíbe que nas orações e cânticos litúrgicos se utilize o Nome revelado no Sinai!
No entanto, esta presença de Deus é sempre desconcertante: Israel terá de ver sua servidão tornar-se mais pesada e sua dor aumentar... Diante do silêncio de Deus. A decepção de Moisés retrata o sentimento do povo: “Em seguida, Moisés e Aarão apresentaram-se ao Faraó e lhe disseram: ‘Assim diz o Senhor Deus de Israel: Deixa partir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto’. Mas o Faraó respondeu: ‘E quem é o Senhor para que lhe deva obedecer, deixando Israel ir? Não conheço o Senhor, nem deixarei Israel partir’. Eles disseram: ‘O Deus dos hebreus marcou um encontro conosco. Deixa-nos ir a três dias de viagem no deserto, para oferecermos sacrifícios ao Senhor nosso Deus. Do contrário, a peste e a espada nos atingirão’. Mas o rei do Egito lhes disse: ‘Por que vós, Moisés e Aarão, levais o povo a transcurar os trabalhos? Ide para vossas tarefas!’ E o Faraó acrescentou: ‘Eles já são mais numerosos que a população local, e vós quereis fazê-los interromper suas tarefas?’ Naquele mesmo dia o Faraó ordenou aos inspetores do povo e aos capatazes, dizendo: ‘Não forneçais mais palha a esta gente para fazer tijolos, como antes fazíeis. Que eles mesmos busquem a palha. Mas exigi a mesma quantia de tijolos de costume, sem tirar nada. São uns preguiçosos, e por isso reclamam: ‘Queremos ir oferecer sacrifícios ao nosso Deus’. Carregai estes homens com mais trabalho, para que estejam ocupados e não dêem ouvidos a palavras mentirosas’.
Os inspetores e os capatazes foram, pois, dizer ao povo: ‘Assim diz o Faraó: Não vos darei mais a palha. Devereis ir buscar a palha onde a puderdes encontrar. Em nada, porém, será diminuída a vossa tarefa’. O povo dispersou-se por todo o Egito em busca de palha. Mas os inspetores pressionavam-nos dizendo: ‘Terminai a tarefa marcada para cada dia, como quando havia palha’. Castigaram os capatazes israelitas que os inspetores do Faraó haviam nomeado, alegando: ‘Por que nem ontem, nem hoje, completastes a quota costumeira de tijolos?’
Os capatazes israelitas foram queixar-se com o Faraó, dizendo: ‘Como podes proceder assim com teus servos? Não se fornece palha a teus servos, e nos mandam fazer tijolos. Nós somos açoitados, mas o culpado é o teu povo’. O Faraó respondeu: ‘Sois mesmo uns preguiçosos e por isso dizeis: ‘Queremos ir oferecer sacrifícios ao Senhor’. E agora, ide trabalhar! Não vos será dada a palha, mas devereis produzir a mesma quantia de tijolos’.
Os capatazes israelitas se viram em má situação com a ordem de não diminuir em nada a quota diária de tijolos. Encontraram-se com Moisés e Aarão, que os estavam esperando na saída do palácio do Faraó, e lhes disseram: ‘Que o Senhor vos examine e julgue: vós nos tornastes odiosos diante do Faraó e dos seus servidores e lhes pusestes na mão a espada para nos matar’.
Então Moisés voltou-se para o Senhor , dizendo: ‘Meu Senhor, por que maltratas este povo? Para que foi que me enviaste? Desde que fui ter com o Faraó para lhe falar em teu nome, ele maltrata o povo, e tu nada fazes para libertá-lo’” (Ex 5).

Deus é assim: age na noite, pois Sua luz nos cega, nos deixa em trevas, pois não podemos compreender totalmente o Seu modo de agir! E aí, só nos resta duas saídas: ou renegá-Lo, dizendo “Tudo é absurdo sem nexo; Deus não existe!” ou abandonar-se e dizer: “Creio em Ti, que me ultrapassas! Abandonando-me em Ti, em Ti esperando contra toda esperança, eu vejo a luz!” São João da Cruz afirma que, nesta vida, Deus, para nós, é nada mais nada menos que noite escura! O nosso Deus sabe agir nas noites da vida! Segundo um antigo poema hebraico, chamado “Das Quatro Noites”, o Senhor agiu em quatro noites memoráveis, evocadas pela noite da Páscoa. Nessas noites, Deus cria ou criará:
·      A primeira: Deus tirou do caos o universo, quando manifestou-se sobre o mundo para criá-lo. As trevas estendiam-se sobre a superfície do abismo e a Palavra do Senhor era a luz que iluminava.
·      A segunda: Isaac foi salvo da treva da morte e viu a luz da vida.
·     A terceira: Israel foi salvo da escura morte da escravidão no meio da noite e o Senhor disse: “Meu filho primogênito é Israel” – e ele viu a luz de uma nova vida.
·     A quarta: o mundo será libertado das trevas do mal e da morte e todas as gerações de Israel serão salvas. Nesta noite, o Messias virá e luz brilhará para sempre!
Um Deus que salva na noite, o nosso Deus! Assim, na noite da fé, o povo terá que esperar pelas pragas, pelo coração duro de faraó, até que o Senhor o liberte! Terá ainda que passar pelo susto às margens do Mar Vermelho. Finalmente, Israel verá o quanto o Senhor o ama e nele acreditará: “Naquele dia o Senhor livrou Israel da mão dos egípcios, e Israel viu os egípcios mortos nas praias do mar. Israel viu a mão poderosa do Senhor agir contra o Egito. O povo temeu ao Senhor, e teve fé no Senhor e em Moisés seu servo” (Ex 14,30s).

Para pensar e rezar:
= “Assim diz o Senhor Deus de Israel: Deixa partir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto!” – Pense: Só quem é livre pode prestar culto ao Senhor! É preciso partir: partir de si mesmo, partir de seu pecado, partir de quanto o escraviza! E partir não para se fazer o que quer, para se viver do seu modo, mas para fazer da vida um culto a Deus! Eis a verdadeira liberdade! Pense nisto!
= Quem são seus senhores: o Deus vivo ou tantos vícios, apegos, pecados e opções tortas?
= O Nome de Deus é Santo, é Misterioso! Isto significa que não poderemos nunca compreender Deus totalmente: Ele é o Outro, o Misterioso, o Infinito, o Santo! Respeite profundamente a Deus e tudo quanto tenha relação com Ele! Ele não é seu compadre, não é o cara legal! Ele é Deus! Você é somente pó que o vento leva! Ele está no céu; você está na terra!
= Reflita bem: Deus, para nós, nesta vida, é nem mais nem menos que noite escura! Sua luz é tanta que nos cega! “De noite, mesmo de noite, iremos buscar a Fonte! Só nossa sede ilumina!”
= Um dia, a luz do Messias, Jesus nosso Senhor, iluminará este mundo. Então a história entrará na glória e o tempo na eternidade! E já não haverá noite porque o próprio Deus nos iluminará e o Cordeiro será nossa lâmpada! Até lá, caminhamos pela fé; não pela visão...

 







II. Provados pela vida miúda de cada dia


Amado por Deus, o povo de Israel foi engendrado de modo simples, por patriarcas nômades, que não possuíam sequer um lugar para viver, que viviam no limite da subsistência e eram estrangeiros na terra; homens que viviam da esperança em Deus e que enchiam a pobreza do presente com a fé na fidelidade dAquele que prometera um futuro de bênção.
Eis como viviam: nômades, estrangeiros na terra: “Abrão atravessou o país até o santuário de Siquém, até o carvalho de Moré. Naquele tempo estavam os cananeus no país. O Senhor apareceu a Abrão e lhe disse: ‘À tua descendência darei esta terra’. Abrão ergueu ali um altar ao Senhor, que lhe tinha aparecido. De lá se deslocou em direção ao monte que está ao leste de Betel, e ali armou as tendas, tendo Betel ao ocidente e Hai ao oriente. Construiu ali um altar ao Senhor e invocou o nome do Senhor. Depois, de acampamento em acampamento, Abrão foi até o Negueb” (Gn 12,6-9).
Israel seria engendrado nas crises das noites da fé e do misterioso modo de agir de um Deus vivo, que nos desconcerta porque é grande demais e não obedece aos nossos tempos, modos e metas, um Deus indisponível: “Depois destes acontecimentos, o Senhor falou a Abrão numa visão, dizendo: ‘Não temas, Abrão! Eu sou o escudo que te protege; tua recompensa será muito grande’. Abrão respondeu: ‘Senhor Deus , que me haverás de dar, se eu devo deixar este mundo sem filhos e o herdeiro de minha casa será Eliezer de Damasco?’ E acrescentou: ‘Como não me deste descendência, meu criado é que será o herdeiro’. Então lhe foi dirigida a palavra do Senhor: ‘Não será esse o herdeiro mas um de teus descendentes é que será o herdeiro’. E conduzindo-o para fora, lhe disse: ‘Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!’ E acrescentou: ‘Assim será tua descendência’. Abrão teve fé no Senhor que considerou isto como justiça. E lhe disse: ‘Eu sou o Senhor que te fez sair de Ur dos Caldeus, para te dar em possessão esta terra’. Abrão lhe perguntou: ‘Senhor Deus, como poderei saber que vou possuí-la?’ E o Senhor lhe disse: ‘Traze-me uma vaca de três anos, uma cabra de três anos e um carneiro de três anos, além de uma rola e uma pombinha’. Abrão trouxe tudo e dividiu os animais pelo meio, mas não as aves, colocando as respectivas partes uma frente à outra. Aves de rapina se precipitaram sobre os cadáveres mas Abrão as enxotou. Quando o sol já ia se pondo, caiu um sono profundo sobre Abrão e ele foi tomado de grande e misterioso terror. E o Senhor disse a Abrão: ‘Fica sabendo que tua descendência viverá como estrangeira num país que não é seu. Serão escravizados e oprimidos durante 400 anos. Mas eu julgarei o povo que os escravizará e depois sairão dali com grandes riquezas. Quanto a ti, irás reunir-te em paz com teus pais e serás sepultado depois de uma feliz velhice. Na quarta geração voltarão para cá, pois a culpa dos amorreus ainda não se completou’. Quando o sol se pôs e escureceu, apareceu um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo, que passaram por entre as partes dos animais esquartejados. Naquele dia o Senhor fez aliança com Abrão, dizendo: ‘A teus descendentes dou esta terra’” (Gn 15). Assim foi pensado e concebido Israel: de um homem já marcado pela morte, de uma mulher cujo seio era estéril, sem vida.
Aquele que faz brotar a vida no deserto iria fazer surgir deste casal um povo, o seu povo, numeroso como as estrelas do céu. A existência de Israel é, por si mesma, um grito: para Deus nada é impossível! Ele dá a graça a quem quer! E Israel terá de aprender, como nós também, a contemplar sua existência à luz da fé e, aí, discernir as pegadas amorosas de Deus.
É precisamente isto que a fé faz: transformar aquilo que aparentemente seria um absurdo ou uma banalidade num sinal velado de amor do Senhor. Se soubéssemos contemplar... O Autor da Epístola aos Hebreus recorda com emoção esta origem sofrida e incerta: “Pela fé Abraão, ao ser chamado, obedeceu e saiu para a terra que havia de receber por herança, mas sem saber para onde ia. Pela fé morou na terra da promissão como em terra estrangeira, acomodando-se em tendas, do mesmo modo que Isaac e Jacó, co-herdeiros da mesma promessa. Porque ele esperava uma cidade fundada sobre alicerces, cujo arquiteto e construtor seria Deus. Foi na fé que morreram todos sem receber as promessas mas vendo-as de longe e saudando, confessando-se peregrinos e hóspedes na terra. Ao dizê-lo, dão a entender que buscam a pátria. Pois, caso se lembrassem da pátria de onde saíram teriam tido ocasião de retornar. Mas desejam outra melhor, isto é, a pátria celeste. Por isso Deus não se envergonha de se chamar seu Deus. De fato lhes tinha preparado uma cidade” (Hb 11,8ss.13-16).
Finalmente, este povo amado, prometido a Abraão, Isaac Jacó será gerado na dura prova da escravidão do Egito: “Surgiu um novo rei no Egito, que não tinha conhecido José, e disse ao povo: ‘Olhai como a população israelita está se tornando mais numerosa e mais forte do que nós. Vamos tomar precauções para impedir que continuem crescendo e, em caso de guerra, se unam também eles a nossos inimigos, e acabem saindo do país’. Estabeleceram, assim, capatazes para que os oprimissem com trabalhos forçados na construção das cidades de depósito do Faraó, Pitom e Ramsés. Os egípcios reduziram os israelitas a uma dura escravidão. Amarguraram-lhes a vida no pesado trabalho do preparo do barro e de tijolos, com toda sorte de serviços no campo, enfim, todos os trabalhos que eram forçados a fazer” (Ex 1,8-11.13s).

Se o Senhor é um Deus que ama, também se cala detrás da densa nuvem dos absurdos da vida e do pranto sofrido dos pobres: o povo geme debaixo do trabalho forçado, as criancinhas são assassinadas, a mãe de Moisés é obrigada a jogar seu filhinho no Nilo... Este silêncio de Deus é causa de escândalo, sobretudo hoje - no mundo da ciência, do debate, das mil respostas, dos questionamentos, do imediato e do mensurável! Diante deste Silêncio podemos ter somente três atitudes: o escândalo descrente, o cinismo sem esperança e a fé que ilumina as trevas e liberta, dando-nos força para a luta! Como não recordar as palavras de Kierkegaard? “Não permitas que esqueçamos: Tu falas, mesmo quando estás calado. Dá-nos esta fé, quando estivermos à espera da tua vinda! Tu calas por amor e por amor falas. Assim é no silêncio, assim é na palavra: tu és sempre o mesmo Pai, o mesmo coração paterno e nos guias com a tua voz e nos ensinas com o teu silêncio!”
Assim, por trás deste silêncio, o Senhor Deus vela para gerar o seu povo: “Passado muito tempo, morreu o rei do Egito. Os israelitas continuavam gemendo e clamando sob dura escravidão. E os gritos de socorro devidos à escravidão subiram até Deus. Deus ouviu-lhes os lamentos e lembrou-se da aliança com Abraão, Isaac e Jacó. Deus olhou para os israelitas e tomou conhecimento” (Ex 3,23-25).
Israel – e eu, que sou Israel! - poderia rezar como o Salmista: “Tu vês a fadiga e o sofrimento, e observas para tomá-los na mão: a ti se abandona o pobre, para o órfão tu és um socorro” (Sl 9 [10])! “Do meu exílio registrastes cada passo, em vosso odre recolhestes cada lágrima, e anotastes tudo isto em vosso livro” (Sl 56[55]).
É assim, no silêncio dos acontecimentos, na aparente insignificância da vida, que o Deus de Israel age! Para quem não crê, há somente a escuridão de um silêncio absurdo, da falta de sentido que oprime e nos destrói... Mas para quem crê, a escuridão torna-se luminosa, como a noite da Páscoa: “Só tu, noite feliz, soubeste a hora em que o Cristo da morte ressurgia; e é por isso de ti que foi escrito: a noite será luz para o meu dia!” Ou, com diz o responsório das laudes dos domingos do Advento: “Mesmo as trevas para vós não são escuras, vós sois a luz do mundo, aleluia!”
Para pensar e rezar:
 = O Senhor não garante aos seus facilidades nem riquezas. Quem caminha com ele deve viver de fé e caminhar de esperança em esperança. Nossa riqueza é o Senhor, nossa certeza é o Senhor, nossa recompensa é o Senhor! Quem caminha assim é livre, é sereno e não perde o rumo na existência...
= Pense: onde procuro minhas certezas? Onde busco minhas seguranças? O Senhor deveria ser minha Rocha!
= Nas nossas noites o Senhor está presente. Se o soubermos reconhecer, escutá-lo, veremos que Ele nos sustenta e nos leva nos braços, ainda que não compreendamos como...
= Deus pode fazer brotar um jardim no deserto da minha vida e da vida do mundo. Do que é morte e esterilidade, Deus pode fazer brotar a vida! “Por que tenho medo? Nada é impossível para Ti!”
= Os modos, medidas e tempos de Deus não são os nossos! É preciso que nos convertamos ao Senhor, confiando nele com toda a nossa força e entendimento!







As cinzas deste Quarta-feira


Hoje a Igreja, Povo de Deus do Novo Testamento, inicia seu caminho para a maior de todas as festas cristãs, a Santa Páscoa. O rito das cinzas marca o início deste caminho.
Qual o seu significado?
Recebermos as cinzas numa Missa penitencial, cujas leituras nos recordam que somos pecadores e necessitamos da paciência misericordiosa e do perdão do Senhor; as orações da sagrada Liturgia de hoje suplicam ao Senhor que acolha nosso jejum e abstinência como gesto de boa vontade e humilde reconhecimento de nossa fraqueza.
Assim, as cinzas têm um caráter penitencial. Recebemo-las com os seguintes sentimentos:
(1) Reconhecemos que, apesar de cristãos renovados em Cristo pelo Batismo, temos em nós ainda a experiência do pecado, das infidelidades grandes e pequenas do dia-a-dia. Reconhecemos que somos convertidos e necessitados de contínua conversão. Reconhecemos também que temos nossos vícios, isto é, nossas más tendências que precisam ser continuamente combatidas.
(2) Por isso mesmo, recebemos as cinzas, que na Escritura têm o sentido de humilhação, dor, reconhecimento da própria miséria, luto. Com isto queremos dizer que reconhecemos nosso pecado e desejamos entrar no caminho quaresmal de combate espiritual, que nos conduzirá a uma renovada vivência do nosso compromisso de batizados. Utilizando as armas do combate espiritual, a oração, a penitência e a esmola, poderemos abrir o coração para o Pai, como Jesus, cheio do Espírito Santo. Então, celebraremos na verdade a Santa Páscoa e renovaremos na sagrada Vigília Pascal as promessas do nosso Batismo.

Portanto, com um espírito contrito, humilhado e cheio de confiança no Senhor, recebamos as cinzas, lembrando-nos das duas exortações que a Igreja faz: “Lembra-te que és pó e ao pó hás de tornar!” Ou seja: a vida não é tua; tu vieste do pó, de lá foste retirado por Deus. Tu deverás viver diante de Deus e um dia a Ele prestarás conta da tua vida! Vive na amizade obediente para com o Senhor teu Deus para que tua vida não termine no pó, no vazio do nada! E a segunda exortação: “Converte-vos e crede no Evangelho!” Em outras palavras: muda de vida! Crê de verdade nesta Boa Notícia: em Jesus, Deus tira-te do pó para te dar a glória de uma vida nova neste mundo e por toda a eternidade!

 





I - Um povo desde sempre amado


Na sua história, Israel pode repetir as palavras do salmo 138: “Senhor, Tu plasmaste meus rins, teceste-me no seio de minha mãe. Graças Te dou, porque fui feito tão grande maravilha. Prodigiosas são Tuas obras; sim, eu bem o reconheço. Meus ossos não te eram encobertos, quando fui formado ocultamente e tecido nas profundezas da terra. Ainda embrião, Teus olhos já me viam; foram registrados em Teu livro todos os dias prefixados, antes que um só deles existisse. Mas, a mim, que difíceis são Teus projetos, Deus meu, como é grande sua soma! Pensava eu em contá-los, mas eram mais numerosos que a areia! E se termino, ainda estou Contigo!”
O salmo faz-nos pensar no mistério da existência, que é sempre livre, aberta e, no entanto, conhecida e “pré-fixada” por Deus, de modo que podemos dizer: “Senhor, tomaste nas Tuas mãos cada momento de minha vida!”
Como cada um de nós, antes de existir, este povo foi amado, plasmado e escolhido de modo misterioso, no silêncio perturbador do cotidiano e na provação das demoras de Deus, já nos tempos do pai Abraão.
Ninguém vem ao mundo por acaso, sem um propósito: cada pessoa é um sonho carinhoso de Deus, é um pensamento de Deus que não se repete jamais. Assim foi com Israel: desde os seus primórdios, antes de ser gerado, este povo foi pensado pelo Senhor com uma vocação que é também uma missão: “O Senhor disse a Abrão: ‘Sai de tua terra, de tua parentela, da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Farei de ti um grande povo e te abençoarei, engrandecendo teu nome, de modo que se torne uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Com teu nome serão abençoadas todas as famílias da terra’” (Gn 12,1-3). 
Pense, rezando estes dois textos acima:
= Também eu fui amado eternamente pelo Senhor. Seu amor me chamou à existência, como chamou Israel! Obrigado, Senhor, pela graça imensa de viver... Imenso dom do Teu amor infinito!
= Minha existência é um mistério, porque brota do próprio Deus, que é Mistério! Quem sou eu? Por que sou assim? Por que minha história tem sido esta? Por que nasci nesta época, nesta situação, com estas características? Mistério... Diante do Mistério, silêncio, contemplação, admiração, gratidão!
= Não venho de mim mesmo, mas de um Outro. Deveria viver minha vida diante Dele, na sua presença! Aí sim, minha vida terá verdadeiro sentido!
= Não nasci para nada; nasci com um propósito! O Senhor me criou para Ele, para deixar-me amar por Ele, viver a vida com Ele, amando-O e Dele fazendo o chão, a rocha da minha vida! Vive de verdade quem vive na verdade da existência. E a nossa Verdade é Deus somente!
= Que sentido estou dando à minha vida?


 





Introduzindo o nosso retiro


A experiência de Israel com o seu Deus é a nossa experiência. É necessário, portanto, retomar sempre a história de nossos antepassados na fé, como quem retoma um álbum de família para aí, aprender de onde viemos, qual nossa história com o nosso Deus e, sobretudo, qual o seu modo de agir... Pio XI afirmava que, espiritualmente, somos todos semitas. Assim, Israel é cada um de nós; contemplando sua história, é a nossa própria vida que contemplamos: “Esses fatos aconteceram para nos servir de exemplo, a fim de que não cobicemos coisas más, como eles cobiçaram. Não vos torneis idólatras como alguns dentre eles, segundo está escrito: “O povo sentou-se para comer e beber; depois levantaram-se para se divertir”. Nem nos entreguemos à fornicação, como alguns deles se entregaram (...), nem tentemos o Senhor, como alguns deles o tentaram, de modo a morrer pelas serpentes. Não murmureis, como alguns deles murmuraram, de modo a perecerem... Estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos”... (1Cor 10,6-11).
Nossa meditação consistirá em acompanhar nossa história na história de Israel e, com as Escrituras nas mãos, redescobrir o que o Senhor espera de nós e tomar consciência do modo como estamos respondendo ao chamado Senhor em nossa existência. O Senhor não muda nunca o seu proceder: ele é o Deus fiel a si mesmo e a nós. Como tratou Israel, nos trata a nós! Olhando para Israel, contemplemo-nos e descobriremos que é para nós mesmos, para nossa história pessoal e eclesial que estaremos olhando.
Recordemo-nos também que o Antigo Testamento coloca-nos em contato com as experiências de um povo conduzido e plasmado pelo Espírito do Ressuscitado: “Ele, que falou pelos profetas”, fala pela história de Israel: “Esta salvação tem sido objeto das investigações e meditações dos profetas, que proferiram oráculos sobre a graça que vos era destinada. Perscrutaram a época e as circunstâncias indicadas pelo Espírito de Cristo, que estava neles, profetizando os sofrimentos do Cristo e as glórias posteriores. Foi-lhes revelado que faziam, não para si mesmos, mas para vós estas revelações, que agora vos têm sido anunciadas por quem vos pregou o Evangelho da parte do Espírito Santo enviado do céu. Revelações estas que os próprios anjos desejam contemplar” (1Pd 1,10-12).
Enfim, a vantagem de um retiro com a Escritura é que na escuta da Palavra o Senhor falará como bem lhe convier na força daquela Palavra que é viva e eficaz.



Escrito por Dom Henrique

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