quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O altar e a orientação da Liturgia – motivações do “Arranjo Beneditino”



 

“Carissimos irmãos e irmãs, em Cristo, hoje trazemos mais um belíssimo artigo sobre a Liturgia de nosso irmão Douglas, dessa vez sobre as motivações do arranjo beneditino do Altar (ML)”

A descrição da transformação da Sinagoga em função da celebração cristã feita até agora, deixa reconhecer nitidamente também ao nível arquitetônico, a continuidade e a novidade na relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Assim, foi criada uma expressão de espaço para a celebração da Palavra que lhe é atribuída. É evidente que outras evoluções se tornaram não só possíveis como também necessárias. O batismo tinha de encontrar o espaço que lhe foi atribuído. O percurso evolutivo do Sacramento da Penitência foi muito longo e o seu resultado tinha de ser incluído na forma de construção das igrejas. Necessariamente, no espaço da celebração também se tornavam manifestas as várias formas de religiosidade do povo. A questão das imagens e da música sacra tinha de ser esclarecida e inserida na estrutura do espaço da igreja. Também as normas arquitetônicas da celebração da palavra e do sacramento, que ficamos a conhecer, não eram fixas; certamente, todas as evoluções e remodelações contêm a seguinte questão: o que é que corresponde à natureza da celebração e o que é que nos afasta dela? Nesta questão, as normas da configuração do espaço nas celebrações, estabelecidas pela Cristandade de língua e pensamento simétricos que acabamos de contemplar, não podem ser ignoradas. Há uma evidência comum para toda a Cristandade, que prevaleceu a todas as variações até ao segundo milênio tardio:a orientação da oração para o Oriente é tradição desde o início, é a expressão fundamental da síntese cristã do Cosmos, da História, da consolidação dentro da singularidade da História da salvação... [um pedacinho aqui não foi impresso direito]. Nela, refletem-se, de forma igual, a boa fé no que já foi oferecido como também a dinâmica da continuação.
Os Homens de hoje não tem muita compreensão para essa “orientação”. Enquanto a oração, em direção ao lugar central da revelação -a Deus que se nos revelou, e como e onde se revelou – continua a ser evidente para o Judaísmo e para o Islão, o mundo ocidental começou a ser dominado por um pensamento abstrato que, de certo modo, talvez até seja fruto da evolução cristã. Deus é espiritual e Deus existe em todo o lado: tal pensamento não significa que a oração não seja comprometida com nenhum lugar e nenhuma direção? Na realidade, nós podemos rezar em qualquer lado, Deus é atingível em todo o lado. Tal universalidade de pensamento sobre Deus é a consequência da universalidade cristã, do olhar cristão para Deus, acima de todos os outros deuses; Deus que abrange o Cosmos e que nos é mais íntimo do que nós somos a nós próprios. Mas este conhecimento da universalidade é, no fundo, fruto do Apocalipse: Deus revelou-se-nos. É por isso que o conhecemos, só assim podemos ser confiantes e rezar em todo o lado. E, precisamente por esta razão, continua a ser conveniente que a oração cristã se dirija para Deus que se nos revelou. E, tal como Deus encarnou e entrou no Espaço e Tempo, tal é conveniente para a oração – pelo menos na Missa – que nosso falar com Deus seja “encarnador” e cristológico e que, mediante aquele que encarnou, se dirija a Deus trino. O símbolo cósmico do Sol nascente é a expressão da universalidade que é superior a todo o lugar, afirmando, ao mesmo tempo, o concreto da revelação de Deus. A nossa oração insere-se assim na peregrinação dos povos rumo a Deus.
Mas o que acontece com o altar? Em que direção oramos nós na liturgia eucarística? Enquanto na construção da igreja bizantina se manteve a estrutura acima descrita, em Roma, o desenvolvimento do ordenamento de espaço foi algo diferente. A cadeira do Bispo é deslocada para o meio da abside (parede oriental); em consequência disso, o altar é colocado na nave da igreja. Assim parece ter sido nas igrejas de S. João de Latrão e de Santa Maria Maior, pelo menos até ao século IX. Contudo, no tempo de Gregório Magno (590-604), o altar é mudado para o lado da cadeira do Bispo, provavelmente pela simples razão de assim se encontrar quase por cima do túmulo de São Pedro [sub Petro]. A nossa celebração do sacrifício do Senhor na comunidade dos Santos, que abrange todos os tempos, adquiriu assim uma expressão evidente. O hábito de erigir o altar por cima de túmulos de mártires remonta provavelmente a tempos antigos e corresponde ao mesmo motivo: os mártires perpetuam a entrega do Cristo ao longo da História, eles são o altar vivo da Igreja e esse altar não é construído por uma pedra, mas sim por homens que se tornaram membros do corpo de Cristo, dando assim expressão ao novo culto: o sacrifício é a Humanidade a tornar-se amor com Cristo. Parece que a seguir, o ordenamento do espaço da Basílica de São Pedro foi imitado por muitas outras igrejas locais romanas.
Os detalhes controversos desses processos não são de importância para as nossas deliberações. A disputa do nosso século foi causada por uma outra inovação. As condições topográficas conduzira a que a Basílica de São Pedro tenha ficado voltada para o Ocidente. Ora, se o sacerdote celebrante quisesse olhar em direção a Oriente – como exige a tradição da oração cristã – então ele encontrar-se- ia atrás do povo, olhando assim – por conseguinte – para o povo. Seja qual for a razão, o ordenamento do espaço na construção de várias igrejas revela a direta influência da Basílica da São Pedro. A inovação da liturgia deste século pegou nesta forma presumida, desenvolvendo a partir dela uma ideia para uma nova configuração da missa: a Eucaristia teria de ser celebrada versus populum (em direção ao povo), o altar – como se pode ver na forma normativa de São Pedro – deveria ser colocado de modo a que o sacerdote e o povo se pudessem olhar mutuamente, formando conjuntamente o círculo de celebrantes. Só assim é que a liturgia cristã seria conforme, corresponderia ao encargo da participação ativa. Só assim é que se responderia à imagem final da Última Ceia. Por fim, essas conclusões pareciam tão convincentes que, depois do Concílio (que em si não fala nada da orientação para o povo) foram erigidos altares novos por todo o lado; a direção da celebração versus populum, surge hoje praticamente como o autêntico fruto da inovação litúrgica, em concordância com o Vaticano II. Na realidade ela é consequência mais mais visível da reestruturação que não implica apenas o ordenamento exterior dos lugares litúrgicos, mas sobretudo uma nova compreensão da natureza da liturgia como ceia.
Mas o sentido da basílica romana e da sua colocação do altar é assim mal entendido, como também a ideia da última ceia de Jesus não é bem exata. Vamos ouvir Louis Bouyer a esse respeito: “A ideia - nomeadamente a da última ceia – de que a celebração versus populum tenha sido a forma original da Última Ceia, baseia-se simplesmente no conceito incorreto de um banquete cristão ou não cristão na Antiguidade. Nos primeiros tempos cristãos, nunca o dirigente de um banquete teria tomado lugar diante dos outros participantes. Todos estavam sentados ou deitados no lado convexo de uma mesa em forma de sigma ou de ferradura. Em tempos da Antiguidade cristã nunca teria surgido a ideia de que o dirigente de um banquete devesse tomar o seu lugar versus populum. O caráter de convivência de um banquete era realçado precisamente pela ordenação oposta de lugares, isto é, todos os participantes estavam sentados do mesmo lado da mesa”.
A esta análise da “forma do banquete” deve acrescentar-se, que seria certamente insuficiente realizar uma descrição completa da eucaristia cristã apenas com base na “ceia”. Apesar do Senhor ter oferecido a novidade do culto cristão no sentido de uma ceia judaica (Pascha), ele não ordenou a reiteração da ceia sem si, mas sim do “novo” que ela constituía. Por isso e que o “novo” muito rapidamente se separou do contexto “velho”, encontrando a sua própria forma que lhe era conforme e que já era preconcebida pelo fato da Eucaristia remeter para a cruz e, por conseguinte, para a transformação do sacrifício do templo para a celebração segundo Logos. Assim aconteceu que, através da memória da morte e da ressurreição de Cristo, a Liturgia da Palavra da Sinagoga, inovada e aprofundada em espírito cristão, se tenha fundido na “Eucaristia”, realizando-se precisamente assim a incumbência de “fazei isto”. Essa nova forma global não era, em si, derivada da ceia; ela tinha de ser definida pela relação entre templo e Sinagoga, Palavra e Sacramento, dimensão cósmica e história. Ela manifesta-se, precisamente, na forma que encontramos na estrutura litúrgica das primeiras igrejas da Cristandade simétrica. É natural que tenha permanecido fundamental também para Roma. A propósito disso, volta a citar Boyler: “Não existe nenhuma indicação de que antes daquela altura (isto é, antes do século XV) e em lado algum tivesse sido levantada a questão do lugar do sacerdote (com o povo diante ou por trás de si) durante a celebração e que lhe fosse atribuída alguma importância ou atenção”. O professor Cyrille Vogel provou: “se alguma vez se fez caso de algo, então foi que o sacerdote tinha de dirigir tanto a oração eucarística como todas as outras orações para Oriente. Mesmo se a orientação do altar da igreja permitia ao sacerdote dirigir a oração ao povo, não nos podemos esquecer que, não apenas o sacerdote, mas também toda a assembléia se dirija para Oriente”.
Com efeito, tanto na construção de igrejas como na concretização da liturgia, estes contextos ou foram ofuscados ou desapareceram por completo da consciência. Só assim se pode explicar que, doravante, a direção da oração comum do sacerdote e do povo tenha sido rotulada como “celebrar para a parede” ou “viras as costas ao povo” o que, obviamente, parecia ser completamente absurdo e inadmissível. Só assim se pode explicar que a ceia – ainda por cima pensada em imagens de tempos modernos – se tenha tomado a ideia normativa para a celebração litúrgica dos cristãos. Na realidade, isso levou a uma clericalização jamais vista. O sacerdote – ou melhor, agora o chamdo presidente da celebração – torna-se o ponto de referência do todo. Tudo depende dele. É necessário vê-lo, participar na sua ação, responder-lhe; tudo assenta na sua criatividade. É compreensível que, desde logo, se comece a diminuir esse papel ainda há pouco tempo criado, distribuindo atividades variadas a outros e confiando a preparação criativa de uma parte da missa a grupos de preparação, que querem e devem “apresentar sobretudo as suas próprias idéias”. Cada vez menos é Deus que se encontra em destaque, cada vez mais importância ganha tudo o que as pessoas aqui reunidas fazem e que em nada se querem submeter a um “esquema prescrito”. O sacerdote que se volta para a comunidade forma, juntamente com ela, um círculo fechado em si. A sua forma deixaou de ser aberta para cima e para frente; ela encerra-se em si própria. Voltar-se em conjunto para o Oriente, não era uma “celebração da parede” e não significava do sacerdote “virar as costas ao povo”: no fundo, isso não tinha muita importância. Porque da mesma maneira como as pessoas na Sinagoga se voltavam para Jerusalém, elas voltavam-se aqui em conjunto “para o Senhor”. Tratava-se – como foi expresso por um dos presbíteros que elaboraram a Constituição Litúrgica do Vaticano II [a Sacrosanctum Concillium], J. A. Jungmann – de uma orientação comum do sacerdote e do povo, que se entendiam unidos na caminhada para o Senhor. Eles não se fecham no círculo, não se olham uns aos outros; são um povo que se põe a caminho para Oriens, rumo a Cristo vindouro que se aproxima de nós.
Mas tudo isso não será romantismo e nostalgia? Pode a forma primitiva da oração cristão ter ainda algum significado para nos hoje, não será que temos simplesmente de encontrar a nossa própria forma, a forma para os nossos tempos? Naturalmente, não se deve simplesmente querer imitar o passado. Cada tempo deve encontrar o seu essencial e manifestá-lo. O importante é distinguir o essencial entre as aparições inconstantes. Seria com certeza errado reprovar categoricamente as formas novas deste século. A aproximação do altar ao povo tinha a sua justificação, pois muitas vezes ele era demasiadamente afastado dos fiéis, embora não nos possamos esquecer que, nas catedrais, podia recorrer-se aos altares no cruzeiro, que tradicionalmente se encontravam entre o presbitério e a nave. Foi também importante distinguir claramente o lugar da Celebração da Palavra do lugar da própria Celebração Eucarística, porque aqui trata-se mesmo da interpelação e da resposta, sendo conveniente os proclamadores e os ouvintes estarem uns diante dos outros, para os últimos poderem elaborar o que ouviram no Salmo, absorvê-lo e transformá-lo em oração , a fim de ela se tornar resposta. Contudo, é essencial voltar-se em conjunto para o Oriente na oração eucarística. Aqui, não se trata de algo casual, mas sim substancial. Não é que o olhar para o sacerdote seja de importância, é o olhar comum para o Senhor. Não é o diálogo que está agora em causa, mas a adoração comum, a partida para o futuro. Não é o círculo fechado que corresponde ao que está a acontecer, mas sim a partida em conjunto, que se manifesta pela direção comum a todos.
Estas opiniões, que há tempos expus, foram contraditadas por A. Häussling. A primeira acabei de abordar. Elas seriam romantismo e saudades inúteis do passado. Seria estranho eu falar apenas da Antiguidade Cristã, ignorando todos os séculos seguintes. Essa objeção é – provinda de um investigador de liturgia – notável, porque na minha opinião, uma grande parte da problemática do conhecimento da liturgia moderna consiste em só querer reconhecer o antigo como normativo e em conformidade com as origens, considerando como fútil toda a evolução que se seguiu, tanto na Idade Média como após Trento. Tal atitude causa reconstruções do antigo, questionáveis e normativas inconsistentes, originando assim propostas de modificação sempre novas, dissolvendo, por fim, a liturgia que cresceu numa evolução viva. Contrariamente a isso, é importante e necessário ver que nem o antigo, em e por si, pode, à partida, servir de padrão, nem o que a seguir evoluiu pode ser classificado como afastado das raízes. É evidente que pode haver uma evolução viva, em que as sementes da origem amadureçam e dêem fruto. Logo a seguir, teremos de voltar a desenrolar este pensamento. Contudo, no nosso caso, não se trata mesmo de um refúgio romântico para o antigo, mas sim de uma nova descoberta do substancial, onde a liturgia cristã manifesta a sua orientação perene. Na opinião de Häussling, a orientação para o Oriente, para o Sol nascente, já não pode ser reintroduzida na liturgia dos nossos dias. Será que não pode mesmo? Será que hoje o Cosmos já não nos diz nada? Será que estamos tão perdidamente encerrados no nosso próprio círculo? Será que a oração com toda a Criação não tem precisamente hoje um grande significado? Será que não é, precisamente hoje, importante dar espaço à dimensão do futuro, à esperança do Senhor vindouro e o reconhecer de novo a dinâmica da Criação como a forma substancial de viver a liturgia?
Uma outra objeção é a de já não ser mais necessário olhar para o Oriente, nem para a cruz, declarando o olhar mútuo entre o sacerdote e os fiéis como o olhar para a imagem de Deus através do Homem. Estar voltado um para o outro seria a orientação correta da oração. Quase não consigo acreditar que esta réplica tenha sido pronunciada por este crítico tão afamado, visto que não é assim tão fácil ver a imagem de Deus no Homem. A “imagem de Deus” no Homem não é algo que se possa fotografar ou ver com o olhar de fotógrafo. É, contudo, certamente possível vê-la unicamente mediante o novo olhar da fé. É possível vê-la, tanto quanto seja possível ver a bondade do Homem, a sua retidão, a sua veracidade interior, a sua humildade, o seu amor – aquilo que o assemelha a Deus. Mas para ver o “novo” é preciso aprendê-lo e a função da Eucaristia é ensiná-lo.
Há uma objeção ainda mais importante ao nível prático. Havemos de voltar a remodelar tudo? Nada é tão prejudicial para a liturgia como o permanente “mexer”, mesmo quando se trata de inovações aparentemente essenciais. Vejo uma solução, na indicação que referi no anexo às opiniões de Erik Peterson. Como já ouvimos, a direção para Oriente relacionava-se com o sinal do “Filho do Homem”, como a cruz que anuncia o retorno do Senhor. Assim, desde muito cedo, o Oriente relacionava-se com a cruz. Onde não é possível voltar-se coletivamente para o Oriente, pede a cruz servir como o Oriente interior da fé. Ela deveria encontrar-se no meio do altar, sendo o ponto de vista comum para o sacerdote e para a comunidade orante. Assim, seguimos a antiga exclamação de oração no limiar da Eucaristia “Conversi ad Dominum” - voltai-vos para o Senhor. Desta maneira olhamos juntos para Aquele cuja morte rasgou o véu – para o que está diante do Pai por nós e que nos abraça, fazendo de nós templos vivos. Considero as inovações mais absurdas das últimas décadas aquelas que põem de lado a cruz, a fim de libertar a vista dos fiéis para o sacerdote. Será que a cruz incomoda a Eucaristia? Será que o sacerdote é mais importante que o Senhor? Este erro deveria ser corrigido o mais depressa possível, não sendo precisas para isso nenhumas reconstruções. O Senhor é o ponto de referência. Ele é o Sol nascente da História. A cruz pode ser a da paixão, que presencia Jesus que por nós deixou transpassar seu lado, donde derramou sangue e água – eucaristia e batismo – tal como pode ser a cruz triunfal, que reflete a ideia do regresso, guiando o nosso olhar para Ele. Pois é sempre o mesmo Senhor Jesus Cristo, é sempre o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade (Hb 13,8).

Nenhum comentário:

Postar um comentário